O triunfo das guitarras em Paredes de Coura
Paredes de Coura é um dos poucos festivais de Verão em Portugal, senão mesmo o único, que vale por si mesmo. Onde a música é fundamento nos outros, aqui ela é apenas pretexto, motivo, adereço, para algo de muito maior que a transcende e que contagia pelo encantamento que oferece a todo e qualquer visitante que arrisque uma passagem por estas paragens. Paredes de Coura impressiona não apenas pelas condições naturais únicas que fazem do Alto Minho uma das belas regiões de Portugal, mas sobretudo pelo uso que delas fazem as gentes da terra e os organizadores do festival, deixando que este os invada e lhes entre casa adentro, e agradecendo ainda por cima o gesto. Em cada espaço verde da vila há uma tenda montada de preferência junto às vacas, os locais cedem generosamente os seus quintais para estacionamento e os seus terraços para bares e esplanadas, os agentes da autoridade são um exemplo raro de como adequar a lei às diferentes situações com que inevitavelmente se deparam e o enorme anfiteatro natural onde o público se espalha para assistir aos concertos é uma das mais belas coisas que jamais se viram em festivais de música por esse mundo fora. É como se uma onda gigante tivesse passado por ali, deixando não um rasto de sombras e destruição, mas uma atmosfera geral de harmonia e de absoluta completude, num casamento feito nos céus para guardar religiosamente para a posteridade. Na noite de quinta-feira, a noite de arranque do festival, as cerca de 20 mil pessoas que se apresentaram no recinto assistiram a um impiedoso triunfo das guitarras em Paredes de Coura. Maltratadas, velozes e ruidosas, como melhor convém a esse género de animalidade sugestiva com meio século de existência e transgressão e que não por mero acaso leva o duro nome de "rock". O cartaz até prometia, ou não estivessem alinhados e em estreia em palcos nacionais três modos diferentes de ser e de estar no melhor do novo rock norte-americano - inteligente no caso dos Queens of the Stone Age, aparatoso no caso dos Stone Temple Pilots e demolidor no que toca aos Papa Roach. Estiveram melhor os primeiros, que actuaram depois de uns renascidos Zen e trataram de mostrar todas as razões que fazem deles um dos expoentes máximos do rock de acento alternativo que se faz actualmente do outro lado do Atlântico. Numa actuação despojada de artifícios e centrada no magnífico álbum "R", estes legítimos herdeiros dos Kyuss deixaram que a música falasse por si e dispuseram em palco um enorme arsenal de projécteis de sensações que dispararam em direcção ao sistema nervoso central do ouvinte, numa prestação que apenas pecou pelo desconhecimento do muito público presente face à obra de uma banda que ainda não se conseguiu libertar do reduto "indie" que primeiro a acolheu. Ainda assim, o grito de ordem do dia veio da plateia: "Rainhas ao poder, já!", ouviu-se no final da exuberante prestação dos Queens of the Stone Age em Coura. Mais aguardada - porventura, a mais aguardada de todo o festival - era a actuação dos Stone Temple Pilots de Scott Weiland, que brindaram Paredes de Coura com o grande presente do festival: o privilégio de ser ele a acolher a primeira data da digressão europeia daquela que é uma das mais mediáticas bandas norte-americanas dos anos 90, cuja carreira tem tanto de sucesso como de um passado maldito feito de abusos de drogas e inúmeras detenções. Iluminado por um aparatoso sistema de luzes e devoto seguidor das profecias do "all american show", o excêntrico vocalista de cabelo vermelho dos Stone Temple Pilots surgiu em palco vestido de polícia e lembrou-se, a dada altura, de lançar o repto à eufórica multidão. "Com que então um festival hippie, hem? Muitas drogas, essas coisas todas... Então aí vai uma canção hippie para vocês!", disse Weiland a meio da espectacular encenação de música psicótica que o quarteto norte-americano levou à vila minhota. Uma vez mais, a plateia não perdeu pela demora. "Só pode estar a brincar, este!", apregoou a mesma voz que momentos antes tinha garantido aos Queens of the Stone Age um mais do que merecido lugar no trono da 7ª edição de Paredes de Coura.O dia finalizou ao som de uns embrutecidos Papa Roach, que rodaram o botão do volume ao nível da tortura auditiva e entregaram-se a uma actuação alucinada que teve dois sinais contrários: os adeptos do seu "nu-metal" demente e furioso ficaram e deliraram, os restantes partiram rumo à imensa feira de comes e bebes situada à esquerda do recinto, ou às múltiplas tendas de adereços mil à direita. Interdita, interdita, só mesmo a zona reservada aos camarins, espécie de caixa forte guardada a sete chaves onde os artistas aterram vindos de um festival para logo partirem rumo a outros destinos. Por entre os contentores-vestiários que dão um estranho aspecto de estaleiro industrial à zona, vê-se Scott Weiland a trincar uma maçã, vêem-se os quatro Papa Roach sentados a uma mesa em gargalhada geral e vê-se o já tradicional cavalete com a respectiva tela e tintas de muitas cores, que a organização coloca de há anos a esta parte à disposição das bandas que queiram dar largas à sua imaginação."Já temos uma bela colecção de obras-primas, da PJ Harvey aos Guano Apes", garante Paulo Bismark, um dos membros da organização deste e de muitos outros festivais. Em Paredes de Coura, nessa terra onde a inspiração anda à solta, nessa imensa obra-prima que a natureza pintou à escala humana, até agora ainda ninguém arriscou pegar no pincel. Talvez porque não sabem. De certeza que não sabem.