Caim e sua mulher
Não existe, em toda a história da literatura, primeiro capítulo como o do primeiro livro Bíblia. "Genesis" ainda não chegou na metade e já tivemos a criação do mundo e de Adão e Eva, a expulsão destes no Paraíso, o assassinato de Abel por Caim, o Dilúvio, a torre de Babel, Abraão, Ló, a destruição de Sodoma e Gomorra, a história de Esaú e Jacó e personagens suficientes para encher vários romances russos. Mas de todos os personagens de "Genesis", o livro das origens, o mais intrigante não tem origem conhecida. "E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Node, da banda do oriente do Éden. E conheceu Caim a sua mulher, e ela concebeu, e teve a Enoque, e edificou uma cidade e chamou a cidade pelo nome de seu filho Enoque." Caim e Abel eram filhos de Adão e Eva, o primeiro e, àquela altura, único casal. De quem era filha a misteriosa mulher que Caim conheceu a leste do Éden? De onde ela saiu?A Bíblia não nos diz o seu nome. Ficamos sabendo os nomes de toda a sua inútil descendência, de Enoque a Tabalcaim, "mestre de toda a obra de cobre e de ferro", passando por Jabal, pai de todos os que tocam harpa e órgão", mas não o seu. A descendência de Caim e sua desconhecida mulher foi inútil, apesar de incluir os precursores da indústria, do "camping" e das artes, porque a prole que nos interessa é a de Sete, o filho que Adão e Eva tiveram depois da morte de Abel e do exílio de Caim. Pois foi dele que descendeu Noé, o da arca, o segundo Adão da criação. A prole de Caim se perdeu no Dilúvio.A mulher sem nome e sem biografia de Caim também é uma precursora, no caso de uma convenção literária. O teatro grego teve o seu "Deus ex machina", a divindade que surgia, inexplicavelmente, do espaço para resolver alguma intricada trama da qual o autor não conseguiu sair. Outros géneros recorreram a invenções igualmente práticas, personagens convenientes como os lordes circunstanciais do poema de Eliot postos no palco apenas para começar uma cena ou duas e depois desaparecer. São artifícios cujo protótipo é a mulher de Caim, que só entra na história para evitar que o incesto seja a única explicação para a sua genealogia. A magnífica narrativa bíblica pode ser lida como a verdade ou como parábola, mas a mulher de Caim pertence a uma tradição menor, a dos improváveis figurantes anónimos sem a qual nenhuma história, simbólica ou não, seria escrita. Criado o protótipo da mulher apenas funcional, dentro da tradição misógina de toda a cultura judaico-cristã, explicações adicionais são desnecessárias. Da mulher que deu filhos a Sete, e que também não podia ser filha de Adão e Eva, não existe qualquer referência. A Bíblia diz apenas que o terceiro filho de Adão viveu cento e cinco anos, e gerou a Enos.Caim também é um personagem misterioso. O primeiro enigma da Bíblia é o banimento de Caim, condenado por Deus a errar a Terra e lavrá-la sem proveito para expiar a morte do irmão. Quando Caim, prevendo que a população do mundo não se restringirá ao quarteto inicial, revela o seu medo de que "todo aquele que me achar me matará", Deus põe nele um sinal e decreta: "Qualquer que matar Caim, sete vezes será castigado." A marca Caim pode ser uma garantia de que seu remorso e seu castigo não serão aliviados pela morte ou pode ser uma bênção obscura, que muda todo o sentido da história. Especula-se que as escrituras hebraicas pegaram emprestado o mito de criação dos quenitas, uma tribo mais antiga do que a de Israel e cujo patriarca era Caim, e que o assassinato de Abel seja uma reencenação de algum sangrento rito inaugural protagonizado por ele, provavelmente um sacrifício humano, tornado abominável pela lei dos judeus. O primeiro assassino da Bíblia seria o Adão do relato quenita, o que explicaria que o lugar de exílio do Caim da Bíblia fosse o mesmo de Adão depois da sua expulsão do Paraíso, a "banda oriente do Éden". E explicaria a bênção disfarçada de Deus e o respeito da Bíblia com a linhagem de Caim, que um mero assassino não mereceria.Deferência parecida tece Rómulo, que também matou seu irmão, Remo, por inveja, como Caim matou Abel, mas em vez de ser punido foi festejado como fundador de Roma, com uma revoada de abutres simbolizando o favor dos deuses e a força e a impiedade do que estava nascendo. As duas histórias são representativas de ritos de fundação que se repetem em várias culturas e que quase sempre envolvem algum tipo de sacrifício animal ou humano, mesmo em versão simbólica. Seus "perpeiradores" se transformam em Executores Sagrados, execrados e frequentemente desterrados pelo seu crime e ao mesmo tempo honrados, pois cumpriram o rito inaugural, mataram por todos. A simbologia da história de Caim e Abel vem sendo discutida há séculos, ou pelo menos desde que a exegese da Bíblia passou a ser uma actividade laica também. Ainda não se chegou a uma conclusão. O que estava sendo inaugurado? Porque Deus amaldiçoa Caim num versículo e lhe dá protecção em outro?O sacrifício de Abel repetiria a imolação com que o outro Caim, o dos quenitas, inaugura a sua nação. A Bíblia se ocupa da posteridade de Caim e lhe dá a importância devida a um Executor Sagrado e a respeitabilidade de um fundador de cidades, descrevendo a sua descendência com detalhes - mas é uma glória que só dura nove versículos. Em seguida, Caim desaparece da história e os verdadeiros precursores de tudo passam a ser Sete, o terceiro filho de Adão, e suas gerações. Até Noé e a sua família, os únicos que sobrevivem ao Dilúvio, aquele radical acto de autocrítica do Senhor. É como se a Bíblia se desse conta de que estava adoptando um rito particularmente sangrento - talvez tal sacrifício de um filho, o que estaria implícito na informação, irrelevante se não tivesse outro significado, de que Caim deu o nome do seu primogénito Enoque à primeira cidade - como o rito inaugural da nação humana, e mudasse rapidamente de ideia, de herói e de história.Seja como for - primeiro capítulo.