Rainha dos bandidos, deusa dos pobres
Entre 1981 e 1983, Phoolan Devi chefiou um bando que pôs em xeque as autoridades da Índia. Tomavam aldeias, e ela, de megafone na mão, ordenava aos ricos que entregassem os seus bens, para dar aos pobres uma parte. A vida acabou por levar ao Parlamento uma mulher vexada desde criança. Foi assassinada a semana passada. Um jornalista que a entrevistou conta a vida da "Rainha dos Bandidos" - uma vida de filme. Não: uma vida maior do que um filme.
"Nunca me considerei uma deusa e nada do que sucedeu naqueles anos devia ter acontecido. A origem de tudo e, naturalmente, das crenças dos pobres que viram em mim uma espécie de redentora é a tremenda miséria e injustiça que essas gentes sofrem na Índia. Aqui acontecem uma série de coisas terríveis, e quando eu actuava contra a ordem estabelecida surgiu essa tentativa de me deificarem, causada, acima de tudo, pelo desespero das pessoas mais pobres."A noite caía em Nova Deli no Outono de 1994 e Phoolan Devi, a "Rainha dos Bandidos", interrompia a conversa para rezar frente ao altar de Durga na sua nova casa, uma espécie de "bungalow" numa das zonas mais elegantes da capital, para onde tinha mudado depois de 11 anos na prisão e de ter casado com Umaid Singh, um próspero construtor.Durga é uma das personalidades mais terríveis de Parvati, a consorte de Shiva, o deus da trimurti ou Santíssima Trindade da cosmologia hindu, que destrói o Universo e volta a criá-lo a partir da energia que se desprende da sua dança. Durga é representada a cavalgar um tigre e com uma arma em cada um dos seus dez braços; é com elas que abate os demónios.Não é casual que a mulher assassinada a tiro na quarta-feira da semana passada às portas da sua casa rezasse a Durga. Porque algo parecido com uma reencarnação de Durga devem ter visto nela milhares de camponeses das castas mais baixas do Norte da Índia, quando em 14 de Fevereiro de 1981, numa espécie de reedição do massacre do Texas, a pequena Phoolan, à frente do seu bando de dacoits, os lendários assaltantes de estrada que ainda hoje actuam em zonas remotas do subcontinente indiano, eliminou 22 homens da aldeia de Behmai.Um ano antes, Phoolan Devi tinha entrado para um bando de ladrões de pouca monta, quase todos pertencentes à subcasta mallah, uma das mais baixas da Índia. Sequestrada por um bando rival de takures, uma casta que despreza os mallahs, esteve retida durante um mês na aldeia de Behmai, sendo sistematicamente humilhada e violada, todas as noites, por uma grande parte dos habitantes da povoação, enquanto os outros faziam que não viam o que se passava.Uma manhã, quando se cansaram dela, despiram-na completamente e obrigaram-na a transportar água do poço para a pequena praça central de Behmai, para que todos pudessem rir-se do seu estado lamentável. Para uma mulher na Índia, poucas humilhações podem ser mais ultrajantes do que a exposição do seu corpo em público; é quase pior do que uma violação.Depois, expulsaram-na da aldeia a pontapé. Phoolan Devi voltou-se, olhou para trás, e prometeu-lhes: "Voltarei." Mas ela era uma mulherzinha de um metro e sessenta, de casta baixa, miserável e analfabeta. Ninguém tomou a ameaça muito a sério.Passou um ano e São Valentim ou a deusa Durga quiseram que fosse precisamente um 14 de Fevereiro o dia fatídico em que um bando de terríveis dacoits, com faixas vermelhas na testa, armados com espingardas e liderados por aquela mulher de apenas um metro e sessenta, mas desta vez com o fogo nos olhos, entrasse de surpresa em Behmai.Os homens tomaram a povoação enquanto Devi se passeava com lentidão pela praça, o mesmo lugar onde um ano antes as pessoas se tinham reunido para a humilhar. Depressa reconheceu um jovem que tinha sido especialmente cruel com ela, e que a par de repetidas violações lhe batia e cuspia. "Hoje não pareces tão valente" - atirou Devi ao rapaz aterrorizado. E deu-lhe um tiro num joelho, onde dói mais. Depois, mandou os seus homens pegar nele, escolheu ao acaso, ou talvez se lembrasse de alguns rostos no meio dos seus pesadelos, mais 21 homens da aldeia e todos foram conduzidos à margem do rio. Aí foram assassinados, e na Índia nasceu uma lenda.- Que pensa da vingança? É um acto lícito em determinadas circunstâncias?- A vida é uma questão de acção e reacção. A mim fizeram-me coisas terríveis e não ia ficar de braços cruzados.Foi a sua resposta naquela tarde de 1994. Pequena, com voz de menina e aspecto frágil acentuado pelo cancro na vagina de que sofria e do qual foi operada há uns meses nos Estados Unidos, era difícil reconhecer nela a que fora baptizada poucos anos antes como a "Rainha dos Bandidos". Excepto em momentos e em respostas como aquela, quando os olhos se incendiavam como brasas, talvez com uma intensidade parecida à que mostravam, desafiadores, nos anos de clandestinidade.Entre 1981 e 1983, o bando de Devi atacou comboios, camionetas e aldeias e foi iludindo o Exército e a polícia da Índia, incapazes de apanhá-la nos desfiladeiros de Madhya Pradesh, o grande Estado do Norte do país.Em muitas das aldeias que estes dacoits tomaram, Devi subia a um telhado com um megafone e ordenava aos mais ricos que trouxessem para a rua todas as suas jóias e rupias. Depois pegava em grande parte do saque e repartia o resto entre os deserdados da aldeia."Antes de partir, avisava que se se atrevessem a reclamar o que tinham entregue eu voltaria e teriam de se haver comigo. Às vezes, esses pobres trabalhavam as terras por 50 rupias (300 escudos) por mês e havia mulheres que passavam dias inteiros no campo para conseguir uma garrafa de leite para os seus filhos", contou-me na sua casa de Gulboar Park.Todos esses assaltos valeram-lhe entre os camponeses uma fama de Robin dos Bosques, de alguém que roubava aos ricos para dar aos pobres, embora isso não fosse de todo exacto. Mas acima de tudo granjearam-lhe uma reputação de vingadora, de Durga, entre as mulheres mais fracas. "Na Índia, se és pobre e te violam, vais à polícia e na esquadra violam-te outra vez", dizia.E sabia do que falava. A história dos sofrimentos de Phoolan Devi não começou em Behmai, nem pouco mais ou menos. De facto, os primeiros anos da sua vida são um exemplo da miséria e da injustiça que ainda hoje sofrem na Índia as castas mais baixas, e pior ainda se são mulheres, por muito que a Constituição tenha abolido formalmente as desigualdades sociais.A futura "Rainha dos Bandidos" nasceu por volta de finais dos anos 50 em Gurha ka Purwa, uma remota aldeia do Estado de Uttar Pradesh, no Norte da Índia. Na verdade, nem ela sabia a sua data de nascimento exacta. Quando tinha uns 11 anos, a família entregou-a a um homem de 35 em troca de uma bicicleta e de uma cabra.O marido e a sogra maltratavam-na e Phoolan fez algo de impensável à luz do código que rege a submissão das mulheres mais pobres das aldeias: fugiu e regressou a casa dos pais. Foi expulsa pela ousadia e repudiada por toda a aldeia. Mais tarde, um primo denunciou-a à polícia por roubo e na esquadra foi espancada e violada.Quando foi libertada, Phoolan Devi começou a andar com grupos de ladrões que cometiam pequenos roubos, em especial nas aldeias dominadas pelos clãs takhures. Devi foi feliz nos desfiladeiros de Madhya Pradesh, uma zona de grande tradição dacoit, termo usado para assaltantes de estrada mas que tem outros significados, pois dacoits eram também os homens que, sob as ordens de outra mulher mítica, Maharani de Jhansi, enfrentaram as tropas britânicas na Revolta dos Cipaios de 1858, que os indianos conhecem como a sua primeira guerra de independência.Nos três anos em que o bando semeou o terror entre os latifundiários e os membros das castas superiores, foram caindo um a um os lugar-tenentes de Devi em tiroteios com a polícia. Incluindo Vikram, o seu grande amor e certamente a pessoa com quem conheceu os seus únicos momentos de autêntica felicidade.Foi ele quem a empurrou definitivamente para a clandestinidade. Em Julho de 1979, Phoolan Devi tinha sido sequestrada por uma quadrilha de ladrões e, uma vez mais, ultrajada. Ao fim de vários dias, Vikram, um dos membros do grupo de raptores, voltou-se contra o chefe, matou-o e libertou Devi.Com o bandido-salvador, que morreu em 1981, a jovem partilhou uma forma de vida sem dúvida excitante. Uma espécie de "Bonnie and Clyde" indiano, com cítaras em vez de banjos na banda sonora. A história inspirou anos mais tarde um dos mais conhecidos cineastas indianos, Shekhar Kapur, que realizou o filme "A Rainha dos Bandidos".Este filme - em que a banda sonora era assinada por outra figura de culto do mundo oriental no Ocidente, o mestre da música quwwali do Norte da Índia e Paquistão Nusrat Fateh Ali Khan - triunfou nos festivais de cinema de Toronto e Cannes em 1994. Mas apesar desta notoriedade internacional nunca chegou a convencer de todo Devi. A "Rainha dos Bandidos" sempre quis que fossem denunciados os vexames por que passou, mas ao mesmo tempo não podia deixar de sentir alguma vergonha quando eram publicitados.Em Fevereiro de 1983, a "Rainha dos Bandidos", extenuada e farta de se esconder, pactuou a rendição com o Exército. Entregar-se-ia, com armas, com duas condições: em primeiro lugar, não ser condenada à morte; em segundo lugar, não ser julgada em Behmai, onde a animosidade contra ela era, logicamente, muito maior do que em qualquer outro lugar da Índia, e ela não dispunha do apoio dos camponeses e das mulheres.No dia da sua rendição, uns dez mil camponeses concentraram-se para a aclamar, e uma gritaria que invocava Durga rebentou no momento em que entregou as armas ao governador do distrito.Phoolan Devi compareceu perante o tribunal de Gwalior e foi julgada por 53 casos de roubo, assalto, pertença a um grupo armado, assassínio, etc, etc. Mas a acusação fundamental, as 22 mortes em Behmai, nunca foi completamente esclarecida. As testemunhas estavam todas mortas e Devi sempre afirmou que quis simplesmente pregar um susto a uma aldeia de malvados; uma actuação que alguns juízes consideraram lógica e até moderada. E, depois, na margem do rio, contou ela, o seu amante teve um acesso de cólera e metralhou-os...Em 1994, a "Rainha dos Bandidos" beneficiou de um indulto parcial. Ao anunciarem-no, as autoridades consideraram as circunstâncias de tremenda injustiça em que tinha decorrido a sua vida. Tinha passado 11 anos nas cadeias de Gwalior e Tihar.Graças à enorme popularidade que tinha conquistado, Devi nunca mais voltou à miséria das aldeias. Conheceu um construtor com dinheiro, casou e instalou-se em Nova Deli. Mas também não se limitou a ficar em casa a preparar a comida e em 1996 apresentou-se às eleições em Mirzapur, no Estado de Uttar Pradesh, numa lista do partido socialista Samajwadi e conseguiu um lugar, que renovou nas eleições de 1999.Há pouco mais de um mês, Phoolan Devi pediu uma licença de porte de arma, pois sentia-se em perigo apesar de contar com um guarda-costas (que foi ferido no atentado que a vitimou). Três homens com o rosto coberto esperavam-na à porta de casa, dispararam-lhe cinco balas na cabeça e fugiram.Devi tinha muitas contas pendentes. Em especial com os takhures e, mais concretamente, com os familiares das vítimas de Behmai, que nunca aceitaram o indulto. Na aldeia, logo que foi conhecida a notícia da sua morte, um rapaz andou pelas ruas de bicicleta a gritar "Boas notícias! A assassina morreu!"Mas a polícia acredita que o atentado tem origem no choque entre os partidos políticos do Uttar Pradesh, onde o Bharatyia Janata, que ocupa o Governo do país e representa as castas mais altas, mantém uma luta terrível com o Partido Samajwadi.Também há quem aponte o dedo ao marido. Devi tinha apresentado contra ele quatro denúncias por maus tratos e afirma-se que queria o divórcio. Esclareçam-se ou não as circunstâncias do assassínio, a lenda da "Rainha dos Bandidos" só pode crescer por causa de um final também lendário. - É realmente assim tão religiosa, senhora Devi?, perguntei-lhe quando saía do seu "bungalow" e ela se inclinava de novo em frente ao altar.- Não há Deus nem religião na Índia para os pobres; só para os ricos. Eu acredito em Durga, que também lutou contra a injustiça. Ser mulher na Índia significa estar submetida à grande opressão dos homens. Quando chegará o dia em que Rama voltará para resgatar todas as indianas, como nos conta o poema sagrado "Ramayana"?