Manuel Gusmão: "Escrevo para um amigo que virá"
A imagem pode ser a de um girassol: núcleo negro que a cada manhã se abre para a luz: "Contra todas as evidências em contrário, a alegria". "Teatros do Tempo" confirma Manuel Gusmão como um nome central na reinvenção da poesia de língua portuguesa.
Digamos, com ele: a morrer está a poesia de-vez-em-quando-sempre. "Mas depois há um golpe de vento que faz uma rima no mundo." A poesia de Manuel Gusmão é um desses golpes de vento, que põem o leitor a abrir e fechar como uma janela, que o transformam numa superfície vibrante.Manuel Gusmão acredita nesse leitor possível. Acredita que se escreve para produzir uma amizade, ao encontro de quem virá. Acredita que a poesia responde. Não porque diga o que esperamos, mas porque continua o que é antiquíssimo. Nesse trabalho de invenção tem permanecido um poeta quase secreto desde 1990, quando publicou o primeiro livro, "Dois Sóis, A Rosa a Arquitectura do Mundo". Seis anos depois, surgiu "Mapas, o Assombro a Sombra". E agora, "Teatros do Tempo", um livro-poema em três andamentos, que traz em si os anteriores (a rosa, os mapas), conflui para um núcleo intensíssimo, em que o mundo escurece como um fim, e volta, como quem recomeça, a amanhecer: "Contra todas as evidências, em contrário, a alegria." Mais exactamente que nunca, o leitor de Manuel Gusmão será aqui uma superfície vibrante.Militante indefectível do Partido Comunista - é membro do comité central e chegou a ser deputado -, professor de Literatura Francesa na Faculdade de Letras de Lisboa e estimulante ensaísta (citem-se as obras sobre Carlos de Oliveira, Fernando Pessoa, Alberto Caeiro ou Ricardo Reis, além dos múltiplos textos críticos que foi publicando, desde "O Tempo e o Modo"), Manuel Gusmão nasceu em Évora, em 1945. Quando se estreou tinha, portanto, 45 anos.No seu primeiro livro, "Dois Sóis, A Rosa a Arquitectura do Mundo", cujos textos vêm de 1969 a 1986, escreve: "como se tivesse sido necessário perder a poesia para achar a poesia". Porque é que só publica em 1990?Quando chegou o 25 de Abril, tinha um livro quase pronto, mas que ia perdendo cada vez mais sentido para mim, não tinha encontrado uma maneira de o construir. Por outro lado, as várias actividades da minha vida foram intensamente ocupadas e, de certo modo, houve uma perda da poesia, passei a escrever muito raramente.Em benefício da acção.Acção política, e não só. Mas de uma maneira de que não estou arrependido. Penso que o livro tal como acabou por sair é mais consistente. Da versão anterior, guarda os textos sobre As Posições do Leitor, e o Alphabeto, de 1971, alguns poemas isolados, mas só se torna possível quando me aparece, em 1981-82, a ideia das figurações da Rosa. Embora tenha a mania da construção e premedite de alguma maneira aquilo que faço, há sempre uma zona de compulsão, de visitação. A Rosa é um tópico longo na poesia, e numa certa tradição, ou em várias, está ligada à efemeridade da beleza, do mundo, do amor. Não quis jogar aí, mas tomá-la como qualquer coisa que regressa, a possibilidade da repetição da origem, que é uma obsessão que me vem de Lucrécio, o nascimento perpétuo do mundo. Por outro lado, permitia-me reunir vários motivos, como uma convocação dos meus investimentos passionais, não apenas com a linguagem, mas com o amor e a história. Também me interessou a imagem que temos das rosas como feitas de pétalas sobre pétalas sobre pétalas e sobre algo que não está ocupado no centro. Esses poemas provocaram a vinda de outros, depois houve uma espécie de trabalho de montagem, ainda ficou a repousar para ganhar alguma distância, e só depois o entreguei.A estreia em 1990 situa-o formalmente numa "geração" que não é a sua. Pegando num exemplo recente, a antologia publicada pela Quasi, em que está incluído: lendo-o, percorremos um tempo que não é o dos restantes autores, maioritariamente entre os 20 e os 30 anos. Ainda há, espero que relativamente esquecidos, textos que publiquei na viragem dos anos 60 para os 70. O que me coloca, no tempo, próximo do Joaquim Manuel Magalhães, do João Miguel Fernandes Jorge, do Nuno Júdice, do António Franco Alexandre.A questão da temporalidade interessa-me, o título "Teatros do Tempo" é disso um indício. O que me fascina são as várias figuras que podemos construir do tempo: as que vêm da nossa própria experiência sensível, o tempo linear, irreversível, que vai ter à morte, que é de certa forma um tempo contínuo; as do tempo cíclico, que são uma maneira de quebrar a continuidade irreversível; as do corte da linha do tempo, que instalam uma duração paralela; e ainda as figuras do tempo ramificado, a ideia de que numa mesma data podemos encontrar diferentes tempos. O carácter tardio da publicação do primeiro livro é um pouco isso: na melhor das hipóteses, independentemente da idade, consigo construir um mundo relativamente próprio, autónomo, na pior das hipóteses, estou irremediavelmente atrasado.Não se trata de atraso, mas - do ponto de vista do leitor, que só o descobre nesse princípio dos 90 - da forma como a sua poesia irrompe entre outras, contendo todos esses ecos, essas ramificações que lhe são permitidas por um caminho.Isso é aquilo em que apostei. Há coisas que vêm do meu vir de trás e do modo como venho depois de alguns outros poetas. Nós preferimos determinados autores, o que quer dizer que somos compulsivamente atraídos por eles. Tanto quanto imagino a minha poesia, gostaria de oscilar entre uma tradição de veemência arrebatada, de que o grande nome penso que é, na poesia portuguesa e não só, o Herberto Helder, e o que chamaria uma poesia da contenção veemente, a de um poeta anterior, Carlos de Oliveira. Por outro lado, gostaria de ter um pé numa tradição que aceita a poesia como uma forma de conversa humana.Ruy Belo...Por exemplo. Não quer dizer que eu tente "fazer como"..., mas que tenho de saber que eles existem. Nisto tudo, não quero esquecer a poesia da Luiza Neto Jorge, como para mim é importante saber que a Maria Velho da Costa escreve, e, noutro plano, a Maria Gabriela Llansol. Numa entrevista, Gabriela Llansol disse que a poesia tinha perdido a pujança. Isso coloca-me uma exigência, como se me sentisse também interpelado. Não estou a dizer que ela tem ou não razão, mas merece, pelo menos, sentir-me interpelado. No texto dela interessa-me o modo como tenta dizer que, a certa altura, na evolução da Europa, é como se o político tivesse perdido o poético. Por outro lado, interessa-me a ideia de transtemporalidade, de personagens que vêm de tempos diferentes, e a ideia de comunidade, que convoca não apenas o humano, mas os outros reinos da natureza. Enquanto que a radical plurivocalidade de Maria Velho da Costa interessa-me em termos da construção do próprio poema. Qualquer coisa de construído e muito diverso do ponto de vista discursivo ou estilístico, nem homogéneo, nem simétrico. Joaquim Manuel Magalhães, no texto que escreveu sobre os seus dois primeiros livros, acentua justamente o lado de construção, insiste na noção de "deliberado". Fala na "racionalidade esplêndida", numa "escrita cerebral", na "tensão de estancar as emoções". Ao ponto de a obra dificultar a própria fala crítica, por já conter a reflexão sobre si própria.Quando publiquei os primeiros livros, o leitor de quem esperava algo em que teria de confiar era o Joaquim Manuel Magalhães. Penso que ele conhece muito bem a poesia... tem depois as suas opções. É evidente que há uma deliberação, uma vontade de construção, que por vezes é um modo de ir à procura, ao encontro da tal visitação. Mas isso é possível a partir de momentos que são aparições, acasos. Sem isso, tudo o resto é um pouco árduo.Discordaria com um sublinhado excessivo desse lado cerebral?Penso que Joaquim Manuel Magalhães resiste, e faz sentido que resista, a determinados aspectos disso. Há de facto um esforço de contenção, e por isso eu falava de contenção veemente. Mas se consigo aquilo que quero, a contenção destina-se apenas a vibrar, a assegurar que o efeito de arrebatamento surja mais fortemente. E neste último livro isso será ainda mais claro. A contenção destina-se a aguentar verbalmente um "pathos", uma passionalidade de que não abdico, e que tem a ver com a esfera das emoções, com zonas de adesão à vida terrestre.Em relação a "Dois Sóis...", sobretudo, este "Teatros do Tempo" mantém o ênfase de estrutura em grupos, mas o seu tempo, a sua sucessão sem interrupções tão longas, parece ser distinto, mais uno.De facto, "Os Mapas..." e este livro são mais próximos entre si que o primeiro. Em relação a "Teatros do Tempo", o último grupo a acabar de ser escrito foi a sequência central, que imagino como um poema único. Logo no princípio do livro fala-se em algo que corrói a paisagem. E depois esse núcleo central é atravessado pela doença, pela iminência de morte, até ao Poema do Fim, em que se pergunta: "Como não dizer demais / e entretanto correr o risco necessário", que parece exemplar para toda esta sequência, para a própria escrita.A questão da morte vem logo do primeiro poema: "Não pode ser aceite que isso que amas e desconheces infinitamente possa morrer". Há a temática da doença, assim como a da morte, designadamente a da morte de amigos. Este livro, como os outros, mas de forma mais arriscada, trabalha sobre matéria biográfica. Ora, esse tipo de discurso é perigoso. Por um lado porque devemos contar que o leitor saiba que toda a tentativa de autobiografia tem uma dimensão de ficção. Não é filtrada de uma vida, ela própria é matéria dessa vida, tentativa de perceber como é que se há-de viver. A regra é correr o risco sem deixar de ser rigoroso, não insistir demais na ideia da autobiografia, até porque nessa frase que citou há várias vozes: pode ser dita pela personagem que escreve ou por outra que morreu e dizia coisas parecidas... Se há alusões, citações, ecos por vezes deformados de outros autores, há também coisas que vêm de personagens de filmes...Este livro é, aliás, o que tem mais cinema. Lynch, Renoir, Dreyer...O cinema sempre me fascinou. E também há frases de pessoas que conheci, de cartas, de conversas...Aproximamo-nos daquele núcleo central, muito ardente, que tem quase uma música de cancioneiro, e ao mesmo tempo é terrível, transportando-nos para um universo de corrosão, de degenerescência. E depois do Poema do Fim há um movimento de enorme força, um vir ao de cima até culminar na alegria, contra todas as evidências. É o que está depois do irreparável. Isto para dizer que é um livro de uma enorme esperança.Costuma dizer-se que a esperança é a última coisa a morrer. Mas, segundo um amigo meu, a última coisa a morrer é a fúria ou a raiva. Gostaria de conjugar os dois dizeres. Atravessar toda essa zona sombria que tem a ver com a doença, a morte dos amigos amados, o desagrado com o estado do mundo. E depois, contra a evidência dessas coisas, conseguir sustentar a alegria. Não uma alegria contentinha, que passa por fechar os olhos ou esquecer, mas uma alegria que exige um estado de extrema tensão. Em parte é a experiência que pode ser tida com aquilo de que gostamos mais, com as artes da linguagem, o cinema, o teatro, a pintura, com o corpo amoroso.Justamente o que se segue ao Poema do Fim é uma vibrante sequência amorosa.Premeditadamente coloquei aí esse poema, que é de uma certa jubilação. Falávamos de esperança. Passemos para a política, que atravessa toda a sua obra. Em "Os Mapas..." há um verso: "canta a contingência do comunismo que vem", portanto a apontar para a frente. Aqui, em "Teatros do Tempo", "Nós continuamos; dê por onde der/ nós temos alguém à espera lá fora ou aqui/ dentro do que em nós hesitante e ameaçado/ é entretanto um canto". Como é que o trabalho poético é também tecido em que se incorpora e firma o político? É matéria biográfica, também. A acção política existe, é um motivo ou tema. Mas não só. A família política a que pertenço [comunista] implica um grande investimento passional, porque se não não se aguenta. Portanto, faz parte de uma das paixões. Mas não é só desta ordem. Penso, provavelmente contra outras opiniões respeitáveis, que a poesia pede resposta, que ela própria responde. Assumindo a poesia como radical liberdade de linguagem, tenho uma espécie de resposta a dar. Devo ter em conta que há pessoas que são expropriadas dos seus possíveis humanos e da sua própria voz. O que não quer dizer - e isto é muito importante - que possa falar por eles, substituir a voz que são capazes de ter. Agora, enquanto construtor de um mundo de palavras, interessa-me construir um mundo alternativo. A poesia é invenção de possíveis de linguagem, que constituem mundos do mundo real. Trata-se de esperar activamente - o que implica uma certa passividade do esperar e uma actividade. A poesia no fundo é feita disso: é trabalho e não trabalho, passividade aceitante e construção apaixonada.Não era evidente que "A Palavra", de Dreyer, também surgisse como referência. A esperança que surge nesse filme é da ordem da transcendência, do divino, do milagre. Justamente o oposto do que estamos a falar. Estou convicto da finitude da nossa condição. Entendo a função que um certo tipo de transcendência tem para determinadas pessoas ou comunidades. A dimensão etimológica da religião como religação faz algum sentido, fascinam-me certos aspectos do pensamento místico e o modo como certos poetas místicos transportam o cantar de amor, trovadoresco mesmo, para o cantar ao divino. Gosto muito desse filme do Dreyer, mas a maneira como vejo o seu final não é, necessariamente, da ordem da transcendência, mas sim da promessa, da alegria contra todas as evidências, da ideia de que embora finitos podemos ilimitar a finitude, de que há perante nós formas diferentes de desconhecido, e haverá sempre. E por outro lado, nesse final, quando ela se levanta na cama, e há um beijo, há um fio de baba que escorre da boca dela, ou uma lágrima, já não me lembro, um pequeno fluxo: aquilo é no limite ainda-terra, ela regressa à vida mas morrerá. E ela é da terra. Simplesmente o que ali encontramos é uma promessa cumprida e realizada.Neste clima de fé... Dessa palavra é que já fugia. Fico com convicção, esperança, promessa...Neste clima de promessa, e recuperando a interpelação de Gabriela Llansol sobre a perda de pujança da poesia, gostava que falássemos dos leitores perdidos, dessa capacidade de resposta que o Manuel Gusmão acredita que a poesia deve ter. Desde o seu primeiro livro há esta ideia: o que se transforma não cessa de ser escrito. Estamos sempre a perder a poesia e a encontrá-la. "Teatros do Tempo" tem uma tiragem de 600 exemplares. Pondo a questão a um nível básico: como é que se continua a escrever sabendo isso? Como, para quem? Admito quando as pessoas me dizem: a tua poesia é muito difícil. Não escrevo para ser difícil. A dificuldade, a existir, faz intrinsecamente parte daquilo que se é compelido a fazer. Há poesia sem grandes dificuldades sintácticas, sem imagens aparentemente estranhas que também não é lida. Isto é um processo muito complexo, que eventualmente se terá acentuado na segunda metade do século XIX, em França, algures entre Rimbaud, Mallarmé, e que tem a ver com o modo como a comunicação se foi instalando, deixando um lugar estreito à poesia. Porque a ordem comunicacional dominante comunica aquilo que já se sabe, ou aquilo que se espera que se diga. E a poesia não pode ceder a isso. Por outro lado, a poesia lida com o facto de sermos dotados de linguagem, e por isso gera-se a esperança de uma comunicação quase automática, as pessoas esperam da poesia também o lado da confissão, em que se reconheçam. Ora a poesia é, como as outras artes, também uma técnica, e tem uma história, e tem necessariamente a ver com a invenção, e a invenção implica um risco de não compreensão. Não se trata de um problema de escolarização. Tenho leitores que têm uma formação a meio do secundário que são sensíveis a movimentos em poemas meus. Lembro-me de uma pessoa amiga dizer que tinha ficado arrepiada com determinados versos, e era o que eu desejara. Se se perceber que a palavra amizade não tem a ver com o clã, com os amigalhaços, diria que nós escrevemos como quem tenta produzir uma amizade. Uma amizade com amigos que já conhecemos, sejam próximos ou longínquos, com amigos que não conhecemos e talvez venhamos a conhecer, e com um amigo que virá e que nunca conheceremos. É um outro, que não conseguimos vislumbrar, mas ao encontro de quem vamos.Recuperando um verso seu: "mas depois há um golpe de vento que faz uma rima no mundo". Entre os autores que tem descoberto, por exemplo, os revelados nos anos 90 e que o acompanham na antologia surgida na Quasi, quem é que ainda faz acontecer esse golpe de vento?A Antologia de Jorge Reis-Sá dá mostras nos poetas mais novos, surgidos nos "anos 90 e agora", de uma qualidade de segurança verbal e uma diversidade de possíveis que só em parte já conhecia. Julgo que ela própria mostra que a "melancolia" começa a ser um nome demasiado largo, ou demasiado estreito, para dizer essa diversidade. Fernando Pinto do Amaral, Luís Quintais, sim; já Ana Luísa Amaral ou José Tolentino de Mendonça interessam-me por outras razões. Em 1997, ocorriam-me outros que são modos de outras tradições reinventadas, Rosa Alice Branco, e também de outros tipos de energia, Nuno Félix da Costa, ou Nuno Moura. Acolho todos os outros. Mas daqueles que esta Antologia me revela, devo dizer que o poeta que mais me surpreendeu foi Daniel Faria. Nele, a magnólia volta a fazer das suas. Há outros que me movem também, mas há mais tempo a vir.