Essa terra esquecida chamada Angola
Angola é uma terra esquecida. Excluída a informação que vai sendo dada pela comunicação social portuguesa, na imprensa internacional dificilmente encontraremos referência a este país, à guerra civil que ameaça transformar-se na mais longa dos tempos modernos, à situação humanitária que é das mais graves neste momento, no mundo.Mas acerca das reais condições de vida dos angolanos, das movimentações e das lutas da oposição, das posições assumidas por personalidades e instituições, no interior e no exterior, incluindo as igrejas, faz-se silêncio. Na melhor das hipóteses, poderemos ler alguma notícia desgarrada, sem enquadramento histórico, social ou cultural, como se ignorar os factos fosse a mais recomendável forma de encobrimento.Dois exemplos: o "Nouvel Observateur", de orientação de esquerda, referindo largamente o envolvimento do antigo presidente do Conselho Constitucional, Roland Dumas, nos negócios pouco claros da ELF Aquitaine, nunca dedicou uma grande reportagem à guerra civil de Angola onde a França tem óbvios interesses, que a classe intelectual francesa também não questiona, preferindo preocupar-se com o remoto Afeganistão...Com uma linha editorial diversa, o "Paris Match", numa edição recente - em publicidade redigida, é certo, mas não claramente identificada -, afirma que em Angola se fez democratização progressiva, sob a batuta do Presidente José Eduardo dos Santos, e existe agora uma situação de paz, propícia aos grandes investimentos, inclusive na área do turismo. E citam-se exemplos verdadeiramente aliciantes.Mas a realidade angolana nunca interessou os repórteres de uma publicação que corre mundo à procura de "más notícias", tradicionalmente consideradas como as melhores vendedoras de revistas e jornais.E estas não faltam em Angola. Segundo o correspondente do "DN" em Luanda, Paulo Julião, "aumenta o número de deslocados e degradam-se as condições humanitárias nos centros de acolhimento como resultado dos confrontos militares entre forças do Governo e da UNITA", o que destrói a teoria da completa pacificação.Muitos desses deslocados, afirma o jornalista, "têm manifestado o desejo de regressar imediatamente às suas áreas de origem, bastando para tal que sejam garantidas as condições de segurança". Coisa que nem o Governo nem a UNITA podem fazer, a menos que cessem os combates e se encetem sérias negociações de paz.Este tem sido, aliás, o caminho preconizado pelos diferentes grupos de cidadãos angolanos, no interior e no exterior, que consideram que chegou a hora de se pôr termo à guerra, reconciliar a sociedade e encetar-se a recuperação material e moral do país.Também os presidentes dos Estados Unidos e da África do Sul apontaram a via negocial para resolução do conflito, secundando as recomendações das igrejas neste sentido.A UNITA declarou já oficialmente estar disponível para encetar negociações, uma vez levantadas as sanções que a impedem, inclusive, de dialogar.O Governo também afirmou que poderia considerar essa hipótese, desde que a UNITA se comprometesse a cumprir o Protocolo de Lusaka. E aqui reside a maior dificuldade, pois não existe unanimidade quanto à sua interpretação. E a experiência passada não abona a seu favor.O Protocolo de Lusaka, assinado a 20 de Novembro de 1993, decorre dos Acordos de Paz de Bicesse, assinados em Lisboa em 1991. Neles, os signatários, Governo angolano e UNITA, têm igual dignidade, assumindo cada uma das partes um conjunto de direitos e deveres com incidência militar e política. Não houve vencedor nem vencido.Acontece que o Governo, apoiado no reconhecimento internacional, actuou como se a UNITA se tivesse rendido, exigindo-lhe o cumprimento de todos os deveres e não lhe reconhecendo praticamente nenhum direito. Em contrapartida, eximiu-se ele próprio aos compromissos assumidos, não desarmando a população civil, não integrando proporcionalmente nas Forças Armadas os militares da UNITA, não nomeando os governadores das províncias e os embaixadores provenientes das alas do "Galo Negro", não reconhecendo a independência aos seus deputados nem legitimidade ao partido.A extensão administrativa fez-se a custo, porque as novas autoridades que substituíram as da UNITA actuaram mais como ocupantes do que como representantes de uma nação comum, empenhados na reconciliação nacional.A UNITA cedeu todos os municípios sob o seu controlo, mas acabaria por recusar entregar os históricos bastiões do Andulo e do Bailundo. Segundo verificação da ONU, aquartelou 70.000 homens, mas ter-se-á também furtado ao desarmamento total, alegando, entre outras razões, que o Governo continuava a armar-se e consequentemente, a representar uma ameaça.O recente escândalo da venda ilegal de armas pela França a Angola, que levou à prisão um tenebroso traficante de armas e até de um filho de François Mitterrand, parece dar razão aos argumentos da UNITA.Curiosamente, a imprensa internacional nunca referiu que o motivo pelo qual essa transacção de armas não correu pelos canais legais, apesar de Angola ser um Estado soberano e do traficante representar o próprio Presidente da República, foi porque o Governo angolano, por força dos acordos de paz, estava impedido de aumentar o seu potencial de armamento.A UNITA também não o podia fazer. E, contra o estabelecido, rearmou-se. A verdade, porém, é que a UNITA nunca se recompôs dos massacres de fins de Setembro de 1992, quando a sua direcção política foi assassinada, em Luanda, seguindo-se uma matança generalizada dos militantes do "Galo Negro", ou de simples cidadãos ovimbundos. Uma acção que se repetiria pouco depois contra cidadãos bakongos relacionados com a FNLA, o que fez reavivar ao extremo os conflitos étnicos nunca resolvidos.A comunidade internacional fechou os olhos a estes acontecimentos, que não foram condenados nem sequer pelos mediadores do processo de paz. Do mesmo modo que cerrou os ouvidos às sucessivas declarações de aceitação dos resultados eleitorais por parte da UNITA.Humilhada, marginalizada, punida unilateralmente pelas infracções cometidas, restava-lhe, para sobreviver, resistir pelas armas. Ao Governo, pelo seu lado, já não lhe bastava ver reconhecida a sua autoridade pela UNITA: estava decidido a eliminá-la, decapitando o seu líder.Confiante nas cumplicidades diplomáticas que a rede dos negócios do petróleo lhe proporcionam, o Governo lançou-se na "terceira guerra", prometendo apresentar dentro de breves dias ao mundo a cabeça de Jonas Savimbi.E foi assim que o Protocolo de Lusaka foi enterrado por ambas as partes.Passaram três anos. Angola continua em guerra e o líder da UNITA não só sobreviveu, como se encontra, aparentemente, de boa saúde.Entretanto, existe agora uma sociedade civil que, pela primeira vez, e não obstante os condicionalismos, se manifesta, contestando o Governo, não se identificando com nenhuma das partes do conflito armado e exigindo ser ouvida nas negociações necessárias ao estabelecimento da paz e de uma sociedade democrática, pluralista e respeitadora dos direitos humanos.Neste contexto, o simples regresso ao Protocolo de Lusaka não parece ser a melhor via para a paz. Muito tempo correu e muitas coisas aconteceram nos últimos oito anos. Reduzir o conflito angolano a um despique de poder entre dois homens é não entender que as razões que movem os povos do Sul contra o domínio de Luanda são múltiplas e ancestrais. No mundo da informação em que vivemos, tudo indica que esses povos lutarão até que vejam reconhecido os seus direitos à igualdade e à diferença, ao respeito pela sua cultura e à sua dignidade de mulheres e homens africanos.Uma condição que os angolanos terão de considerar, sejam eles Governo ou oposição, porque Angola não é só Luanda.jornalista