O pão-de-ló quadrado de Vizela e a família que sempre o fabricou
O pão-de-ló coberto e quadrado das Caldas de Vizela é quase uma história de amor vivida por quatro gerações de mulheres de uma família local. Tal como o novo concelho, a família Ferreira viveu o apogeu e a decadência daquelas que já foram as termas da alta sociedade portuguesa. Histórias paralelas de um bolo e de umas termas. E, já agora, umas receitas.
A história do pão-de-ló das Caldas de Vizela conta-se no feminino e é tão peculiar que até o nome do tradicional doce de ovos foi mudado para "bolinhol". Intimamente ligado ao crescimento das Termas de Vizela, o "bolinhol" ficou conhecido em todo o país e no estrangeiro graças aos que, depois de um tratamento termal, não dispensavam o pão-de-ló rectangular e coberto com uma calda de açúcar especial. Com mais de cem anos de vida, a criação e a evolução do "doce de Vizela" está agora contada no livro "O pão-de-ló de Vizela, a arte da doçaria e D. Maria da Conceição da Silva Ferreira", de Eduardo Pires de Oliveira e Maria de Fátima Salgado. Escrito para contar a história do "bolinhol", o livro é ainda uma forma de comemorar o octogésimo aniversário da "doceira" Conceição da Silva Ferreira, a herdeira da terceira geração de mulheres que dedicaram a sua vida a melhorar o pão-de-ló e a inventar novos doces. Já com mais de cem anos, a primeira receita de "bolinhol" foi "escrita" por Joaquina Pedrosa Ferreira da Silva, especialista na arte de fazer "doces de gema" que depois, numa cesta envolta em toalhas de linho, vendia nas festas religiosas um pouco por toda a região do Minho. Era também ela que vendia as passarinhas, as cavacas, os melindres e os sardões, biscoitos que ainda hoje deixam água na boca a todos os que já os provaram.Há um século, as Caldas de Vizela estavam em pleno crescimento. Desde que em 1725 foi estabelecido o primeiro hospital numa casa do Largo da Lameira que as termas de Vizela foram ganhando clientes. E há cem anos, eram já muitos os hotéis existentes na vila termal e a qualidade das águas do Rio Vizela era manifestamente inferior à da qualidade de vida oferecida aos aquistas. Ao lado dos hotéis prosperavam os edifícios para banhos e os hospitais. Na memória dos mais velhos, estão ainda os coretos onde tocavam as bandas de música, os grandes parques ajardinados (de que só resta o exemplar do "jardim das termas"), os lagos com cisnes e peixes multicolores e as casas de chá onde eram servidos, com todo o requinte, o chá e os "bolos secos" de Joaquina Pedrosa Ferreira da Silva. E nas nascentes de água existentes nas freguesias de S. João e S. Miguel das Caldas - ainda hoje indicadas para "o reumatismo, vias respiratórias, doenças de pele e ginecológicas, alergias, flebites e doenças gastrointestinais, do fígado e vias biliares" - brotava também uma certa aura "chique" que levava sobretudo as melhores famílias do norte de Portugal e do norte de Espanha a aproveitar os meses de Verão para "fazer termas".Sem mãos a medir na confecção de bolos secos para os turistas, a doceira Joaquina conhece, nas termas, um cozinheiro espanhol que, aproveitando a época balnear, veio trabalhar para a cozinha de um dos muitos hotéis vizelenses. E é este homem, supostamente galego, que incentiva a primeira mulher da família Ferreira a fazer coisas novas. De experiência em experiência, ao fim de algum tempo Joaquina Ferreira da Silva já tem em mãos o famoso "bolinhol": ao tradicional pão-de-ló redondo, muda-lhe a forma para rectangular e cobre-o com a tal calda de açúcar, já mais apurada, de forma a que o bolo fique um pouco húmido e coberto com uma deliciosa manta branca. E depois de convencer um vizinho, mestre na arte da funilaria, a fazer as formas rectangulares para o "bolinhol", no dia 11 de Julho de 1908, às cinco horas da tarde, a família reuniu-se para a "solene inauguração" do novo forno onde, durante muitos anos, seria cozido o pão-de-ló rectangular. No mesmo dia foi ainda comemorado o décimo quinto aniversário de Albina Ferreira, filha de Joaquina e que seria a "herdeira" da mãe na arte da doçaria. Foi já Albina que, juntamente com o marido, viu chegar, em 1921, do Instituto Nacional de Propriedade Industrial o deferimento do pedido de registo do já então famoso pão-de-ló coberto de Vizela. Foi também o casal que aumentou a casa onde eram confeccionados os bolos e foi ainda sob o seu olhar atento que, nos anos 20, um ramo da família Ferreira resolveu abrir nova casa, destinada ao fabrico e venda de doces. Apesar de tudo, a tradição continuou a passar de mãe para filha e foi Maria da Conceição da Silva Ferreira - a agora homenageada - a tomar conta da arte familiar e a aumentar o negócio.E as termas de Vizela continuam a ser o local preferido pelo "jet-set" da altura para passar o Verão. Ainda sem a febre da praia e sem o conhecimento dos benefícios do iodo, as famílias abastadas continuavam a preferir a pacatez das Caldas de Vizela para passar as férias. A historiadora Maria José Pacheco (nascida na vila vizelense) diz mesmo que a estância termal era uma espécie de "Cauteret?s portuguesa" que reunia condições para "ombrear com as congéneres francesas dos Pirinéus". Aos hotéis, junta-se agora serviços como a farmácia, os correios e o telégrafo. Contudo, a maior concorrência entre as unidades hoteleiras para cativar os turistas era mesmo através da boca e os hotéis, à boa maneira dos clubes de futebol, faziam contratações, à época milionárias, para terem os melhores cozinheiros. Os doces, esses, vinham sempre das doceiras do costume: as mulheres da Família Ferreira. Em paralelo com as unidades hoteleiras, Vizela enche-se de moradias faustosas mandadas construir por alguns negociantes ingleses de vinho do Porto e por famílias das mais diversas proveniências. Era o tempo em que no casino local se organizavam os chás dançantes. Vestidos a rigor, os aquistas dançavam toda a noite. Pelas badaladas das vinte e quatro horas, era altura de servir o chá preto e bolinhos confeccionados pelas já famosas doceiras. Às três horas da manhã, nova paragem para beber o "belo cacau" preparado por Joaquim Ribeiro Ferreira, marido de Albina e pai de Maria da Conceição.No fim do Verão, de regresso a casa, os aquistas levavam na bagagem quilos e quilos de "bolinhol". Ao longo do ano, sobretudo em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, o pão-de-ló coberto era enviado pelos correios. "Ainda me lembro das marteladas que apanhava nos dedos quando estava a embalar os doces", recordou à PÚBLICA Maria de Fátima Ferreira Salgado, da quarta geração das mulheres do "bolinhol". Sem a eficácia e a simplicidade das actuais encomendas postais, o pão-de-ló coberto era carinhosamente embrulhado em papel vegetal e enfiado dentro de caixas de madeira, fechadas na própria confeitaria, que eram depois enviadas para todo o país. Por certo, o maior desgosto que Maria da Conceição "pregou" à mãe foi ter embarcado para o Brasil. Deixando os pais e os irmãos empenhados na arte do "bolinhol", Conceição respondeu à "carta de chamada" do marido e embarcou, juntamente com dois filhos mais novos, para o Rio de Janeiro. Na noite antes de embarcar, o pai deixou-lhe ao lado da cama a receita do "bolinhol" como que oferecendo à filha a maior prenda que lhe poderia dar. No Rio, a doceira organiza cursos de culinária para grupos de senhoras e confecciona pão-de-ló que, apesar de ser feito num forno caseiro e de pequenas dimensões, rapidamente ganha fama e chega à mesa das embaixadas e de alguns ministérios. "Kibom", o actual nome da pastelaria familiar localizada numa das principais ruas vizelenses, vem mesmo dessa época. "Quando fazia 'bolinhol' para o ministro Octávio Murgel de Resende ele comia o pão-de-ló e dizia 'qui bom, qui bom'. E o nome foi ficando", explica Maria da Conceição da Silva Ferreira. De regresso a Portugal, já em Lisboa, a doceira foi convidada, nos anos sessenta, para confeccionar pão-de-ló para as Noivas de Santo António. Hoje, aos oitenta anos, na doçaria gerida pela filha Maria de Fátima, é ainda possível ver a experiente doceira de colher de pau na mão a cobrir o "bolinhol". "É preciso muita paciência", refere, enquanto com lestos movimentos de vaivém espalha camadas sucessivas do açúcar em ponto sobre o fofo pão-de-ló até que fique branco.Já sem o fulgor de outros tempos, as termas das Caldas de Vizela continuam abertas ao público. Contudo as margens do Rio Vizela, outrora límpidas e verdejantes estão agora, tal como em quase todos os afluentes do Ave, escuras e ainda com vestígios da laboração das fábricas têxteis que, durante anos, despejaram no rio todos os resíduos industriais. Sem a classe de há cem ou cinquenta anos trás, as termas continuam a ser frequentadas por aqueles que procuram nas suas águas a cura para males terrenos. Dos muitos hotéis que havia no agora concelho de Vizela, apenas um resistiu à crise e apresenta-se modernizado e eficiente; das muitas pensões só restam dois exemplares. Quanto às casas construídas pelos aquistas e que marcaram uma época, as que não foram demolidas para dar lugar a grandes urbanizações perderam a opulência. Mas há hábitos que ficaram desde os tempos áureos: passadas dezenas de anos, fazem ainda parte da gastronomia local "receitas" inventadas para dar uso aos "desperdícios do Bolinhol". Como o bolo quase só gasta gemas de ovos, os residentes (porque para a mesa dos turistas só ia "o melhor") tratavam de comer as claras cozidas com bacalhau e batatas ou então em enormes "pastelões" (claras e farinha) fritos com sardinhas pequenas.