Reencontrar Braudel

Texto que seduz pela narrativa de um "mágico contador de histórias", "Memórias do Mediterrâneo - Pré-história e Antiguidade", de Fernand Braudel, propõe-nos uma viagem de longo curso. Guiada por um dos maiores historiadores do século XX.

Em tempo de férias, embarque num cruzeiro por milénios de História, guiado pela prosa de Fernand Braudel. Viaje pelos "ex libris" turísticos do Mediterrâneo e descubra em Santorini uma causa possível para o desaparecimento da lendária Atlântida. "Memórias do Mediterrâneo - Pré-história e Antiguidade" é um estimulante percurso intelectual por lugares que a Europa reconhece como o berço da sua civilização. Fernand Braudel mostra-nos, no entanto, que a unidade esteve apenas nas águas deste grande mar que desde cedo constituiu a articulação entre dois universos definidos por uma linha imaginária, no sentido dos meridianos, localizada nas imediações da Sicília. Dois Mediterrâneos, um oriental outro ocidental, pulsam a ritmos distintos e traduzem um movimento de influências e dominações no sentido leste-oeste.Trata-se de um texto coerente de um dos maiores historiadores e pensadores do século XX, escrito em 1969 a convite de Albert Skira para integrar uma colecção sobre o passado do Mediterrâneo. Ficou, no entanto, por editar até 1998, ano em que as Éditions de Fallois decidiram divulgá-lo, não sem o submeter à revisão crítica de Jean Gullaine e Pierre Rouillard, dois consagrados conhecedores da Pré-história e da Antiguidade. A eles coube assinalar, através de notas e indicações bibliográficas, os trechos da obra que, nos trinta anos volvidos de intensas investigações nesta área, necessariamente estariam desactualizados ou, até, incorrectos. Questiona-se, portanto, por que se justifica a publicação de uma obra que careceu de múltiplas notas denunciadoras das suas falhas.Aponte-se uma boa razão na possibilidade de em "Memórias do Mediterrâneo" encontrarmos os veios essenciais do pensamento de Fernand Braudel sobre os grandes pilares da História das sociedades humanas, tão visíveis aqui como no trabalho que se encontrava a escrever em simultâneo, "Civilização Material, Economia e Capitalismo", ou, ainda, na "Gramática das Civilizações" e na emblemática obra "O Mediterrâneo no Tempo de Filipe II", matriz da sua conceptualização. É o tempo longo, não só o das mutações condicionadas pela geografia, mas ainda o das grandes mudanças técnicas que definem uma civilização. O conceito de revolução assume assim o exclusivo significado de rupturas que exigiram milénios ou séculos de gestação e que escapam a uma análise minuciosa sustentada no decurso breve dos acontecimentos. É a eleição da troca, do comércio longínquo - caindo o autor na facilidade de o designar por "internacional" - considerado como o factor "revolucionário em qualquer época". É pela troca que a cidade se impõe e interage com o campo. Sempre desigual, designada por vezes de "captura mercantil", sustenta as primeiras formas de economia palaciana, embrião do Estado. É a troca que articula cidades, é o comércio que difunde inovações, tornando-se o sedimento das grandes massas civilizacionais que vão urdindo um Mediterrâneo fracturado em dois mundos de desenvolvimento desigual. O Oriente, do Egipto fechado sobre si próprio (que evoca "aos nossos olhos, com as devidas diferenças, a China do século XVIII d.C.") e da Mesopotâmia (em permanentes convulsões, "condenada a fazer esforços, a ser activa e inteligente", tendo em Ugarit um porto, "espécie de Génova, para não dizer uma antecipação de Veneza") marca os destinos do mar. Influencia pelo comércio um Ocidente de atraso relativo e só efectivamente colonizado após 1200 a. C.. Uma dualidade apenas resolvida com os séculos de Roma, quando o império se torna maior que o Mediterrâneo.Eis uma interpretação de milénios de História equiparável a uma visão tão global quanto a proporcionada por uma viagem aérea: a que o autor aconselha nas páginas de abertura. Permite-se então Fernand Braudel apaixonar-se por pormenores de um estilo de cerâmica, de técnicas de frescos, de processos de joalharia, enquanto demonstrações de uma difusão de culturas, desligando-se do cerne dos debates entre especialistas que estes temas suscitam. Não estamos, certamente, diante da prosa de um estudioso da Pré-história e da Antiguidade. É o olhar do historiador da vida material dos séculos XV e XVI e do construtor de um modelo de análise dos grandes espaços e economias modernos, tendo no Mediterrâneo o ponto de observação privilegiado. Surgem as analogias entre a Grécia e a Itália Renascentista, entre Ugarit e Génova, entre a colonização fenícia para o Ocidente e a viragem da Espanha do século XVI d. C para a América recém descoberta. Busca de permanências, de grandes linhas estruturantes do Mediterrâneo ou projecção do século XVI "negociante e mercantil, num mundo antigo tão diferente", como o questionam os revisores Pierre Rouillard e Jean Guilaine? Ainda que a resposta varie em função dos temas abordados, não deixa de ser estimulante o arrojo do historiador "dos grandes espaços e dos longos períodos de tempo"."Memórias do Mediterrâneo" enquadra-se no campo do ensaio, não no da síntese. Para o especialista, esta obra não ultrapassa o nível das hipóteses. Coloca questões pertinentes, embora muitas vezes evitadas nos estudos da especialidade por falta de provas científicas para lhes dar resposta. Porém, o leitor curioso destas temáticas aperceber-se-à de que a Europa celta, "onde as cidades crescem mal" coexiste com um Próximo Oriente marcado pelos grandes impérios sustentados por redes urbanas. Encontra, assim, uma narrativa de conjunto do Mediterrâneo em cada grande etapa da sua história.

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