A verdadeira Amália mora aqui

A placa doirada onde se lê "Fundação Amália Rodrigues - Casa-Museu" é novinha em folha. Na verdade, faltam poucos minutos para a sua inauguração, no dia seguinte àquele que seria o do 81º aniversário de Amália. Em frente à famosa casa da diva do fado, florida e pintada de amarelo-torrado, já uma pequena multidão se juntou. Por toda a Rua de S. Bento, rebaptizada nesta e naquela parede como "Rua Amália" pelos seus admiradores, não se fala de outra coisa. Na paragem do 6 e do 49, mesmo ali ao lado, ouvem-se exclamações e comentários como "O que é que se passa na casa da Amália?" ou "Está tudo às portas a ver!...", num burburinho de curiosidade popular. Mas hoje, terça-feira, não é ainda o dia do povo.Pontual, Almeida Santos, Presidente da Assembleia da República, chega às 18h30. Vem acompanhado da deputada Maria de Belém. A porta verde do número 193 abre-se e tem início a primeira de muitas visitas àquele que, durante mais de 50 anos, foi o lar da grande senhora do fado. Hoje, o papel de guia cabe a Aida Furtado, a conservadora do museu.Logo no "hall", a presença de elementos que são o denominador comum em toda a casa: os tons de terra, fogo e negro, como convém ao mundo do fado. A luz fraca complementa esse ambiente, embora hoje as luzes das câmaras de televisão possam ofuscar os visitantes.As atenções desviam-se para a sala da jantar, soberbamente decorada. A mesa está posta, como se esperasse oito ilustres convidados. O relógio de caixa alta, de trabalho francês, está parado nas cinco para as cinco. Em casa de Amália, o tempo parou. Aliás, o objectivo da fundação foi mantê-la tal como a diva do fado a deixou no dia 6 de Outubro de 1999, data da sua morte. Isto, apesar das necessárias obras e alterações. Mas para Eugénia, a zeladora, "a casa está mais ou menos na mesma" e "respeita completamente o que era a casa da D. Amália". Muitos objectos mudaram de lugar, mas Eugénia desdramatiza: "A própria D. Amália mudava muitas vezes os objectos de sítio...". Opinião diferente tem Ana Maria Rodrigues, prima e cunhada de Amália, cuja semelhança física com a fadista é impressionante. "Basta ela não estar presente para ser diferente...", diz, visivelmente comovida. Certo é que, apesar dos extintores, saídas de emergência e, sobretudo, das vitrines e acrílicos, o espaço conserva o seu lado íntimo e acolhedor. Isso sente-se mais ainda no primeiro piso. À medida que sobe as escadas, a conservadora do museu vai explicando a Almeida Santos e restantes convidados a origem dos quadros que vivem nas paredes da escadaria. Especial atenção para um retrato de Amália, pintado por Maluda no início da sua carreira. Especial porque é uma pintora cuja obra está presente em quase todos os cantos da casa.Já lá em cima, um armário com condecorações e prémios. Antes de ver o quarto de Amália, Almeida Santos detém-se, na ante-câmara, sobre a vitrina onde estão expostas algumas das jóias de cena que, segundo Aida Furtado, não chegam a um terço do total. "Isto é muito feminino", comenta Almeida Santos. E acrescenta: "A personalidade dela está aqui, traduzida em mil objectos". Ao fundo, junto às janelas, um "espelho Império", como esclarece o folheto distribuído à entrada. Enorme, com dois terços que caem até ao chão. As pessoas passam, olham-se e revêem Amália. Um pouco como na letra de "Cansaço": "Por trás do espelho quem está/de olhos fixados nos meus/alguém que passou por cá/e seguiu ao deus-dará/deixando os olhos nos meus...". Mesmo ao lado, num pequeno armário onde impera o negro e o brilho, os muitos sapatos da diva e mais alguns vestidos e bijutaria. Enfim, o quarto. A cama em tons de castanho. O oratório. O toucador onde se maquilhava. O baú de onde transbordam jóias de ouro e prata. E santos, muitos santos. Porque Amália era crente à sua maneira. O visitante sabe que a disposição dos objectos nem sempre é a original, mas o importante é o respeito pela memória que ali vive. É o caso dos objectos "deixados" em cima da cama: o livro "Versos", duas rosas, uns óculos escuros e um lenço onde a renda desenha a letra "A". Tudo símbolos daquela estranha e tão recheada forma de vida. Antes de descer novamente, o quarto que Amália usava para ver televisão e descansar. Ao lado, um armário cheio de livros de arte ou de outras paragens. O último ponto do roteiro é a sala, já no piso de baixo. Era aqui que se faziam os famosos serões com guitarradas e conversas animadas. As guitarras, bandolins e o piano de cauda encontram aqui a sua casa. E é também aqui que tem lugar a inauguração propriamente dita, ao som do eterno "Povo que lavas no rio". Convidados, familiares, amigos e admiradores de Amália aplaudem as palavras de Amadeu Aguiar, presidente da Fundação Amália Rodrigues: "Com esta inauguração cumpre-se mais uma das vontades da Amália: abrir a sua casa ao povo". Até porque Amália disse um dia que "se alguém gosta de mim, algo de mim sobrevive." Almeida Santos, amigo pessoal de Amália (ela chegou a ouvi-lo cantar fado em Coimbra!), confessa: "Conhecia-a muito bem, mas nunca tinha entrado aqui". E no livro que, à saída, espera os comentários dos "visitantes ilustres", o Presidente da Assembleia da República não resiste a deixar a sua opinião: "Foi com muita emoção e muita honra que assisti à inauguração da Casa-Museu Amália Rodrigues. A casa, o mobiliário e os objectos pessoais prolongam o culto da sua memória. António Almeida Santos."Mas, para Amália, os mais ilustres visitantes serão os do povo. E esses, não se farão esperar. Porque os restos mortais da fadista repousam no Panteão Nacional, mas a verdadeira Amália mora aqui.

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