As novas doses de Cavallo
O ministro da Economia da Argentina, Domingo Cavallo, pretende eliminar o défice público diminuindo os salários dos funcionários públicos e as pensões de reforma menos baixas. Seguiram-se protestos populares, e os mercados financeiros reagiram com nervosismo.
Os argentinos estão de novo nas ruas. Quinta-feira paralisaram o país com uma greve geral, naquele que foi o segundo dia de protestos contra o plano de cortes na despesa pública da autoria do ministro da Economia. Domingo Cavallo descobriu que o país austral já não tem crédito internacional e que só pode gastar o que arrecada através do fisco. Decidiu então apostar em eliminar o défice público até ao final do ano, apresentando na semana passada um pacote de cortes no valor de 1,77 mil milhões de euros (354 milhões de contos), três por cento da despesa orçamentada para 2001. Os ordenados dos funcionários públicos e as pensões de reforma superiores a 235 euros (47 contos) por mês sofrerão uma redução de 13 por cento nos próximos três meses. E até ao final do ano verão o seu valor ajustado de acordo com a evolução da receita fiscal. O mesmo princípio aplicar-se-á aos subsídios de desemprego e às ajudas aos mais pobres.Com a economia em recessão há três anos, uma taxa de desemprego de 18 por cento e com 38 por cento da população a viver abaixo do limiar da pobreza, dificilmente as medidas anunciadas soariam como um belo tango aos ouvidos dos argentinos. Mas os mercados financeiros também reagiram com nervosismo ao facto de o Governo ter decidido dar prioridade ao pagamento da dívida externa - que atinge já 150 mil milhões de euros - em detrimento do pagamento de salários e outras despesas domésticas.Os investidores estão preocupados com a agitação social provocada por estes cortes e duvidam de que o Presidente Fernando De La Rúa consiga apoio político suficiente para aplicar o programa. A sua coligação não deverá contar, por exemplo, com o apoio de 14 dos 24 governadores provinciais, que pertencem à oposição peronista. E poderá ser difícil aprovar o pacote de medidas no Congresso, onde poderão surgir brechas entre a União Cívica Radical do Presidente De La Rúa e o sócio minoritário da coligação, a Frepaso (Frente para Um País Solidário), situado à sua esquerda. A oposição já tornou público que não apoiará o pacote governamental. Este foi arquitectado depois de o Tesouro argentino ter sido forçado a pagar juros entre 14 e 16 por cento ao ano para colocar no mercado dívida pública no montante de mil milhões de euros (duzentos milhões de contos). O Governo interpretou este acontecimento como um sinal de que o país já não é merecedor de crédito externo e de que há dúvidas quanto à sua capacidade de o pagar. A cotação dos títulos de dívida pública caiu 35 por cento só no mês de Junho. Com a dívida pública argentina a representar um quinto do total de toda a dívida pública das chamadas "economias emergentes", a fuga de capitais destes países tem-se processado num efeito dominó, com os mercados bolsistas e as divisas de todos os países da América Latina (e de outras latitudes, da Europa de Leste à Ásia) a sofrerem quedas abruptas nas últimas duas semanas.As ondas de choque fazem-se depois sentir em praças como Nova Iorque ou Madrid, devido à exposição das economias norte-americana e espanhola na América Latina.No centro dos problemas económicos da Argentina estão dois círculos viciosos. As taxas de juro são determinadas fundamentalmente pela forma como os mercados internacionais avaliam o risco da economia, e não descerão enquanto esta não mostrar sinais de retoma. E será difícil haver retoma enquanto as taxas de juro não baixarem. Por outro lado, a contracção económica dá origem a maiores défices públicos, que ao serem financiados através de emissão de dívida pública empurram as taxas de juro para cima, deprimindo a economia.Mas a verdadeira camisa de forças que amarra a economia argentina é a paridade fixa entre o peso e o dólar norte-americano, estabelecida por Cavallo em 1991, quando da sua primeira passagem pelo Governo de Buenos Aires. A "lei da convertibilidade", como é conhecida na Argentina, permitiu reduzir drasticamente a taxa anual de inflação de valores superiores a 3000 por cento em 1989 para apenas 1,6 por cento em 1999, mas com vários custos. Metade das exportações argentinas têm como destino a zona euro e o Brasil e desde o início de 1999 o peso (ou seja, o dólar) subiu 27 por cento face ao euro e 53 por cento face ao real, afectando a competitividade externa do país.Com a economia brasileira fortemente afectada pela crise energética e num clima de arrefecimento económico mundial, Cavallo apercebeu-se da armadilha por ele próprio concebida e decidiu criar, no dia 15 de Junho, um "peso comercial". A partir dessa data, os exportadores argentinos recebem do Governo um bónus de oito por cento sobre o total das suas vendas, enquanto que os importadores pagam idêntica percentagem sobre as suas compras. Trata-se de uma desvalorização competitiva, além de um bom negócio para o Estado, já que a Argentina conta com um crescente défice comercial. Porém, com esta medida, Cavallo abriu uma caixa de Pandora, uma vez que os mercados financeiros começaram a antecipar o abandono da paridade entre o peso e o dólar, uma preocupação a somar ao seu receio de que o país deixe de estar em condições de pagar a sua dívida externa. Neste momento, toda a nova dívida que o Estado contrai no estrangeiro destina-se apenas a pagar os juros sobre a já existente. Abandonado pelos mercados que sempre o idolatraram, Cavallo está neste momento entregue ao seu próprio engenho e sorte.