A vida de Cândida Branca Flor
A cantora Cândida Branca Flor foi encontrada morta no seu apartamento de Massamá, arredores de Lisboa, no dia 11. Terá alcançado a paz que procurou sempre, repousará agora em tranquilidade. Amigos, dos que um relato cruzado permite identificar como verdadeiros, garantem que o mesmo não se pode dizer de quem lhe fez mal em vida, dos "abutres". Reconstituição possível da história de uma mulher que lutou até ao fim pela felicidade e pelo afecto sem nunca os atingir.
Aldeia de Pêro Negro (600 habitantes), Sobral de Monte Agraço, sábado, 7 de Julho. São já duas da manhã. Há cerca de hora e meia que Cândida Branca Flor, nome artístico de Cândida Maria Coelho Soares, 51 anos, é esperada ansiosamente no pavilhão do clube local por 50 a 70 indefectíveis que combatem o sono e o cansaço. Já actuaram outros quatro artistas. Cândida vem de Montoito, Alentejo, onde cantou nessa mesma noite. "A maioria das pessoas queria ver a Cândida", recorda Vitor Magalhães, presidente do Clube Desportivo e Recreativo de Pêro. Ela chega sem dar mostras de cansaço, canta "Quero voltar a ser feliz" e acaba a comer bifanas, beber coca-cola e contar anedotas no bar do clube, de onde sai por volta das 4h00 em direcção a casa, em Massamá. Às 9h00 está a pé, pronta para rumar ao Alentejo com dois amigos e visitar a mãe adoptiva de 91 anos, num lar de Moura. "Era de uma energia inesgotável", comentam os amigos Maria da Luz e Rui Amorim. "Inesgotável" apesar de todos os problemas económicos e pessoais que a acompanhavam e não lhe davam descanso, apesar de todo o desgaste, traições, roubos, fraudes, apesar dos que a traíram, de "amigos" que depois da morte sussurram que era "fraca" ou "tinha mais popularidade que qualidade" - outros garantem que dizem isso porque ela, simplesmente, não aceitou dormir com eles. "Inesgotável" apesar dos que telefonam para a editora a cobrar dívidas, dos que se dizem agentes de espectáculos e parecem engajadores de mão-de-obra barata.Apesar de tudo, não falhava um espectáculo. Queria voltar a ser grande, queria os aplausos do público, as luzes da fama. Debilitada, jogara tudo, apostara forte num renascimento, na volta por cima. Com os últimos dez mil contos que recebeu da partilha da casa onde viveu com o ex-marido, liquidou algumas dívidas e investiu o resto numa operação plástica e no último disco, "Amor e Mentiras", pago do seu bolso mas ficando a dever 500 contos ao produtor. Estava, como afirma a cantora Manuela Bravo, "a renascer das cinzas, a remar contra a maré". Tudo em vão. Mal distribuído, o disco quase não apareceu nos escaparates. "Foi uma tremenda desilusão", confessa a sua última grande amiga, Maria da Luz. Foi a derradeira de muitas e devastadoras desilusões numa carreira iniciada 25 anos antes em conjunto com Emanuel Rosado, que conhecera em 1968 e com quem casara em 1970.Recuemos: anos 70, Emanuel Rosado é controlador de qualidade de uma firma que fabrica munições e Cândida Soares é recepcionista numa empresa de materiais de construção. A voz de Cândida leva-o a gravar temas escritos por si e cantados por ela, mas a bobine é levada sem sucesso à editora Melodia. É então que conhecem no bar "Lousianna", em Cascais, Nuno Rodrigues e António Pinho, que precisavam de uma voz feminina para a Banda do Casaco. Em 1975, Cândida grava com a Banda do Casaco, como Cândida Soares, ao mesmo tempo que explora já a música ligeira com "Fungagá da Bicharada" e "Êxitos de Beatriz Costa".Sem qualquer ligação ao meio musical, o casal aprende à sua custa e com a ajuda em especial de Gabriel Cardoso. "As primeiras noções de show foram dele e a primeira aparelhagem de som também", explica Emanuel, que cedo mostrou habilidade para empresário: "Numa Feira de Viseu, ela cantou como Cândida Soares com a Banda do Casaco e ganhou 200 escudos. A seguir actuou sozinha como Cândida Branca Flor e recebeu dez contos".Na altura, não existia a figura do agente. Ele assume esse papel e decide também que ela deve cortar com os vestidos compridos e os penteados muito artísticos da época e assumir uma imagem mais jovem, com roupas mais justas e mais exuberantes.A vida dos dois passa a ser de inteira dedicação à causa. Ele é o maestro, ela a intérprete. Ele escolhe temas, roupa, penteado, até o calçado, trabalha o som e a luz, monta e desmonta tudo. Ela canta. Os primeiros anos são de grande entrega. Ela, que só em 1980 largará o lugar de recepcionista, tem dias de chegar a Lisboa de um show na província às 8h30, pegar no emprego às 9h00 e sair às 19h00. O casal viaja e dorme num Mini com a aparelhagem dentro do carro, os camarins são improvisados em casa de pessoas da terra onde actuavam.Nestes anos de estrada, convivem com o universo artístico da altura, em concertos que chegam a juntar cinco ou seis ao mesmo tempo, ou em restaurantes. Com Cândida, são nomes como José Cid, Marco Paulo, Alexandra ou Herman José que povoam os palcos e as estradas secundárias e esburacadas do Portugal dos anos 80.Cândida adora Carlos Paião, gosta muito de Gabriel Cardoso, faz amizade duradoura com Alexandra ou Manuela Bravo. É uma mulher reservada, algo melancólica ou mesmo triste na intimidade, que mostra uma constante boa disposição na presença dos colegas e amigos.A opinião não varia por parte das mais diversas pessoas que a conheceram em fases diferentes da sua vida. Fernando Santos, produtor: "Era uma querida." Maria da Luz, amiga: "Era extremamente alegre, muito positiva." Mas carregava uma melancolia que desaparecia em palco; ela transformava-se. "Renascia, era outra", conta Sónia Henriques, corista que a acompanhou em espectáculos. "Tinha uma alegria e energia extraordinárias em palco", sublinha o colunista social Carlos Castro. "Fora do palco, era a mulher mais triste do mundo".No fim dos anos 70, Emanuel e Cândida encontram Carlos Paião numa festa. Entre os que povoaram e marcaram a vida de Cândida, poucos tiveram o peso de Paião, que compôs propositadamente para ela. "O Paião era uma pessoa muito generosa, uma humildade e uma simplicidade ímpares", afirma o ex-marido. Em 1979, Cândida concorre ao Festival da Canção com "Trocas e Baldrocas", de Paião e em 1982, volta à carga com quatro temas o autor. "Eu pedia-lhe coisas simples, 'orelhudas' e ele fazia", recorda Emanuel Rosado. Em 1983, concorre novamente e canta com Paião o tema "Vinho do Porto".A intensa dedicação à carreira que faz com que nunca gozem férias. Essa entrega, aliada ao profissionalismo do marido, co-produtor, agente, empresário, roadie, técnico de som e de luzes, começa a dar frutos. A cantora realiza uma média de 140 espectáculos por ano, em Portugal e nas comunidades, com um pico de 35 concertos na época do Natal.Apesar disso, há quem defenda que a sua voz nunca "explodiu". A professora de canto Cristina de Castro, que a ensinou durante dois anos, recorda: "Era uma voz muito bonita, com qualidades muito acima do tipo de canções que cantava. Tinha qualidades para enveredar pelo canto lírico". O produtor Fernando Santos concorda: "A nível de voz, ela estava no top, mas era mal servida de repertório. Mesmo quando cantou na Banda do Casaco, era a meia-voz, sem explorar os agudos".Em meados dos anos 80, o casal começa a sonhar em aplicar o dinheiro ganho, primeiro num terreno onde construiriam vivendas geminadas com Paião, depois na Casa do Painho, nas Caldas da Rainha, que adquirem em 1986. No Painho, recuperam uma enorme casa, onde instalam ginásio, capela e anexos. Quem ali privou com o casal recorda uma casa de sonho. "Era uma casa recheada de antiguidades, lindíssima, onde gastaram uma pequena fortuna", conta o radialista Rui Castelar. O ritmo intenso de trabalho provoca os primeiros desgastes. Em 1988, com 31 anos, Paião falece num absurdo desastre na estrada, a caminho de um espectáculo, o que afecta bastante Cândida. A relação desgasta-se, a falta de filhos parece contribuir. "Quando tive o meu filho mais novo, ela disse-me que gostava de ter filhos mas não dava por causa da carreira", afirma Alexandra."Vivíamos a carreira a 100 por cento, 24 horas a dois, comíamos, dormíamos, viajávamos, tudo a dois. Era escravizante", admite Emanuel Rosado.A cantora começa lentamente a ressentir-se desta asfixia. "Numa carreira profissional como era a dela - afirma Emanuel - tem de existir disciplina, cumprimento rigoroso dos horários, entrega completa". O casamento de 22 anos rebenta em Novembro de 1992, quando Cândida foge de casa em pijama, levando as jóias e queixando-se do que até aí omitira por amor próprio ou vergonha. Emanuel Rosado, afirmará a cantora até ao fim da sua vida, agredia-a física e psicologicamente e não a deixava ter filhos."Ela contava que ia para os espectáculos toda negra", diz agora a cantora Maria Armanda. "Toda a gente do espectáculo sabia que ele lhe batia." Carlos Castro é da mesma opinião: "O marido perseguiu-a emocionalmente, ela queixava-se de maus tratos físicos e psicológicos". O ex-marido nega tudo: "Nunca ninguém viu uma nódoa negra, os amigos sabem que isso não é verdade, perguntem ao Carlos Ribeiro, ao António Sala, ao José Cid, ao Marco Paulo, a todos os que privaram connosco no Painho".O ex-marido conta que ela decidira outro rumo para a sua carreira, foi influenciada a cantar jazz, e que ele se opôs. "Tivemos uma violenta discussão, fui completamente radical sobre o jazz, propus-lhe fazermos férias pela primeira vez, ela não aceitou. Enviei-lhe flores, cartas, não quis saber". Quando sai de casa, Cândida Branca Flor é como um pássaro que sempre viveu numa gaiola e é posto de repente em liberdade. Ela cantava e dominava um palco com energia e alegria, mas não sabia fazer o resto: conduzir, agenciar, tratar dos dinheiros, gerir, no fundo, uma carreira. "Ela nunca mais encontrou quem soubesse controlar a vida artística, foi sempre a cair", diz Rui Castelar. Carlos Castro afirma que Emanuel Rosado minou a carreira da ex-mulher. "Ela queixava-se de que ele a perseguia e a boicotava". Este nega tudo.Enquanto decorre um massacrante processo de divórcio litigioso que havia de durar oito anos, entrarão e sairão da vida de Cândida personagens cujo papel no descalabro emocional, profissional e financeiro da cantora está longe de estar totalmente avaliado. Passa a ser vista na companhia de um vidente, para mais tarde travar uma amizade com Ana Paula Reis, com quem viverá cerca de quatro anos e montará, inclusivamente, um ginásio na Ericeira, associada a um homem "baixinho, careca e gordo", um Pedro de quem ninguém se lembra agora do apelido.O período na Ericeira marcará de forma definitiva Cândida Branca Flor. O Gimnocafé, "a menina dos seus olhos", onde inclusivamente é monitora, desabará, ao fim de uns anos, ao mesmo tempo que a sua vida pessoal. O Pedro-sem-apelido, que chegava a apresentar como companheiro em múltiplas ocasiões e que vivia com ela e com Paula, desaparece, deixando um mar de dívidas.Ana Paula Reis engravida, tem problemas na gravidez e quer muito que Cândida partilhe com ela os momentos da maternidade. A cantora foge. As tentativas de contactar Ana Paula Reis falharam. Alguns dos que contam a história referem imperiosas razões de foro íntimo. A cantora Ágata recorda esse período: "Eu acho que ele era casado em Braga e tinha filhos. A Cândida vivia com ele e com a Paula. A Cândida ficou a dever dinheiro à Paula e desligava o telefone para não a ouvir. Tive muita pena da Paula, ficou sozinha com o bebé e queixava-se da ingratidão da outra". Ágata conta que esteve com elas num Natal em que encontrou Cândida deprimida. "A Paula teve de a ir buscar porque tinha bebido demais" e acrescenta: "A gente tem de perceber que não somos eternas... ela em termos de voz já lhe faltava qualquer coisa e queria mostrar um tipo de vida que já não podia ter. Até ficou a dever 900 contos numa boutique, na Ericeira. Coitada, veio por aí abaixo com uma pinta do caraças...". Sem casa, devastada pela situação, pelo desaparecimento do sócio, pela perda do ginásio, assoberbada pelas dívidas dos leasings da carrinha de espectáculos e aparelhos do ginásio, Cândida Branca Flor procura mais uma vez alguém que a possa ajudar.Surge então Fernando Santos, que produziu Lara Li, Midus e conhecia a cantora dos tempos da Polygram, quando entre outros trabalhos, tocava na banda Da Vinci. É em casa do produtor que Cândida encontra alguma tranquilidade mas, a dormir no quarto dos filhos de Santos, e a repartir fins-de-semana entre a Ericeira e a Buraca, decide procurar um apartamento. Fernando Santos tenta que ela alugue um apartamento perto de si, mas a cantora aceita uma proposta mais barata e aluga uma casa perto do cemitério de Benfica. Quem lhe arranja a casa? O Irmão Caetano.Quem é o Irmão Caetano? Uma figura imponente, grande cabeleira e vestindo de roxo, que se rodeia de incenso e imagens, o Irmão Caetano, 50 anos, está fixado em Benfica e criou em tempos a "Igreja Católica Cristã Nova Jerusalém". Assume-se simultaneamente como "católico apostólico romano", como "vidente", cultor da Nossa Senhora dos Milagres e do Padre Sousa Martins e gosta de exibir as "chagas de Cristo" que lhe surgem alegadamente todas as Quaresmas. As tentativas para falar com o Irmão Caetano falharam: a "afilhada" disse-nos por duas vezes que ele estava "para fora" e "sem contacto".Caetano parece ter conhecido Cândida Branca Flor num centro de estética e até lhe propôs que trabalhasse com ele num futuro lar para idosos da "Igreja". No apartamento alugado a Caetano por 50 contos, onde havia uma divisão cheia de perfumes, orações e incensos, viver-se-ão alguns dos momentos mais difíceis de Cândida Branca Flor. "Eu achei que aquele não era o lugar certo para uma figura pública mas não pude fazer nada", diz Fernando Santos.A princípio, à cantora agrada a proximidade com o Centro Comercial Colombo, onde frequenta regularmente o ginásio e o centro de estética. As coisas pioram quando Cândida se apercebe das excentricidades do Irmão Caetano e, mais tarde, quando tem um novo envolvimento que fracassa. Quando Emanuel Rosado se encontra com Cândida a 7 de Dezembro de 1999, para assinarem o acordo judicial que põe termo à guerra jurídica de partilhas, ela é uma mulher exausta. Aceita a venda da Casa do Painho mas exige que esta seja feita por uma agência neutral e não pelo ex-marido. Este afirma que, deste modo, perdeu um potencial negócio de 40 mil contos e teve de aceitar a venda por 20 mil, metade para cada um. Outro motivo de disputa é o recheio, com antiguidades valiosas. No período conturbado de Novembro de 1992 ao início de 1994, ela acusa Emanuel Rosado de estar a retirar e a vender as peças mais valiosas. Mas sabe-se que ela retirou parte, ele levou outra parte, e que o restante foi arrolado em tribunal em Fevereiro de 1994 e finalmente dividido na justiça.Figura pública alegre e muito elegante, é despretensiosa e simples. "Ela chegava sem maquilhagem", recorda uma esteticista,"e dizia: 'Não me tratem por Dona Cândida'". Era também, noutros testemunhos, "encantadora", "simpática", "educada", "querida" e "generosa": "A Cândida ajudou-me num momento difícil da minha vida", afirma Carlos Castro. "Ajudou-me muito quando me separei, em 1999, foi uma grande conselheira", diz Manuela Bravo.Interiormente, sofre - e muito. Um dia, teve uma crise de choro em plena perfumaria. "Olhou para mim e desatou a chorar", conta uma esteticista, "fui buscar água, tentei acalmá-la e levei-a para o escritório para que ninguém a visse naquele estado". Cândida desabafou. "Contou da violência doméstica, de quanto gostara do marido, das pessoas que se aproximaram dela. Perguntava-me como podia aguentar tanto sofrimento dentro dela, mantendo-se como figura pública, com um corpo fantástico".Totalmente desencantada com o meio artístico, procura pessoas desinteressadas e fora dele. É então que conhece a esteticista Maria da Luz, alguém que a ouve, que também vive sozinha e que, muito simplesmente, só quer a sua amizade. Quando Cândida é posta fora do apartamento de Benfica, Irmão Caetano diz a Maria da Luz: "Sou o diabo". Maria da Luz afirma ter resgatado a cantora e apresentado queixa na polícia para poder retirar os haveres de dentro do apartamento. Levou-a para sua casa em Massamá. "Ela estava sem casa...", afirma Maria da Luz com um sorriso triste mas bonito, dois dias depois do funeral. "Se você visse uma pessoa sem casa, não a levava para sua casa?"Em Massamá, Cândida Branca Flor recupera. Maria da Luz cuida dela como se fosse uma filha e uma enfermeira. Saem juntas, alegram-se, confidenciam. Quando Cândida decide fazer uma plástica e, no pós-operatório, precisa de ficar em casa, Maria da Luz cuida dela. Quando Luz tem uma gravidez atópica, Cândida fica muito preocupada. Cândida chama-lhe "sobrinha", "Luzinha" e "bebé", Maria da Luz trata-a por "tia". A cumplicidade é total. "Ainda nem sei onde está o meu cartão de crédito, acho que era ela que o tinha...", diz Luz. Estabelece-se uma relação quase de mãe e filha. "Dizia que ela era a filha que nunca pudera ter", conta Rui Amorim, companheiro de Maria da Luz. "A Cândida foi a pessoa mais importante que conheci até hoje", diz Maria da Luz. Apesar de toda a ajuda prestimosa do "anjo" Luz, Cândida incapaz de escapar à montanha russa emocional. Fala a muitas pessoas em suicídio, em "timing de vida", em ter "uma hora marcada". À corista Sónia Henriques, com quem passou 15 dias nos Estados Unidos, em Fevereiro, confessa que estava farta de sofrer e que, mais tarde ou mais cedo, poria termo à vida. No período em que vive em Massamá, os espectáculos são poucos e Cândida sujeita-se a todo o tipo de agenciamentos, sem cachet fixo. A artista ressentia-se amargamente da nova vaga de cantores mais jovens, "sem valor algum", que cilindraram comercialmente a sua geração. Paradoxalmente, o público parece não lhe regatear aplausos nos últimos concertos. "Estive em shows com ela em que o público sabia as letras todas e nos Estados Unidos, foi aplaudida de pé", conta Luís Portela, cantor de Setúbal. "O público adorava-a", diz Sónia Henriques, corista de Portela. Mas Cândida parece já demasiado fragilizada. "Dizia que o público já não gostava dela". Uma das coisas que a perturba são as mensagens obscenas que recebe com regularidade. A morte do pai, em Outubro do ano passado, piora tudo. O dinheiro esse, esvoaça. Já este ano, é obrigada a vender o carro e deixa quatro rendas do apartamento por pagar.Apesar de amparada diariamente por Luz, queixa-se de solidão. "Telefonava-lhe: 'Cândida, onde estás?' E ela: 'Estou em casa, estou sozinha'", conta Portela. Por que é que, tão mal financeira e psicologicamente, não pede ela ajuda aos amigos do mundo artístico, os verdadeiros? "Ela quando estava em baixo, isolava-se", comenta Alexandra no seu camarim do Teatro Politeama, em Lisboa. Há cerca de três anos, Alexandra e o marido, o empresário José Gaspar, encontraram-se com Cândida para a ajudar a reactivar a carreira. "Entusiasmou-se a princípio e, de repente, afastou-se." Mas agora participava num novo projecto, de gravações de fados, promovido pelo empresário musical Vítor Cabanelas.Hoje, várias pessoas lamentam não a ter amparado. "Fomos amigos distraídos que não a ajudámos. Não foi suficientemente amada por nós", afirma Aristides Teixeira, ex-apresentador de televisão, de quem Cândida foi madrinha de casamento. "O caso dela personifica o drama de outras pessoas do meio artístico que neste momento estão a passar o que ela passou. Há muita gente a sofrer, neste meio".Profundamente desiludida com muitas pessoas que a rodearam, Cândida não fuma, continua a ir ao ginásio e só bebe - whisky ou gin - quando se encontra só, em casa. Apenas usa calmantes para poder dormir. "Transportei a Cândida várias vezes para os espectáculos e privei com ela, nunca a vi apanhar uma bebedeira", afirma Luís Fernandes, proprietário de um bar em Lisboa. "Connosco", diz Sónia Henriques, uma corista que viajou com ela recentemente, "bebia água, quase sempre". Vários depoimentos confirmam também que era muito religiosa e "que pedia a Deus frequentemente".Os testemunhos sobre o que se passou na terça-feira, dia 10, são contraditórios. Rui Amorim e Maria da Luz dizem que havia uma reunião na editora Sucesso para pedirem a resolução do contrato e estava previsto jantarem todos nesse dia com um empresário de Torres Vedras para este ajudar a relançar a carreira de Cândida e que ele telefonou a desmarcar. Luís Portela diz que fazia anos nesse dia e que Cândida terá ficado desiludida por não ter sido convidada.De concreto, só se sabe que misturou comprimidos e álcool e que foi encontrada morta no dia seguinte, por Maria da Luz. Todos os que lidaram de perto com ela ultimamente não acreditam em suicídio. "Foi um acidente", afirma Luz. "Tenho a certeza que foi um acidente, o coração não aguentou. Ela costumava tomar comprimidos e misturar com álcool, outras vezes. Quando mostrava intenção de se suicidar, telefonava", diz Sónia. "Ela disse-me a mim que tinha uma data marcada para se matar e que só faria depois de deixar a Maria da Luz bem, ela adorava a Maria da Luz". A notícia abate-se sobre os artistas amigos como uma onda de choque. Alexandra soube antes de entrar em palco no Teatro Politeama para encarnar a "solidão" de Amália. Manuela Bravo estava na Ilha de São Jorge, nos Açores, a preparar-se para embarcar para a Ilha Graciosa. "Vou ter que a substituir dia 11 de Agosto, em Casa Branca e não sei como vou conseguir..."Cândida faleceu no anonimato suburbano. O apartamento de Massamá fica numa praceta, os rés-do-chão cobertos de grafittis, os edifícios de seis andares na monotonia do branco e castanho. O único sinal de que a cantora ali viveu vem de um ramo de flores que alguém prendeu na janela da sua casa. A princípio, o velório e o funeral prometem transformar-se num último exercício de solidão. Quase ninguém sabe que Rui Amorim e Maria da Luz estão a organizar tudo. A Agência Lusa noticia que o corpo está no Instituto de Medicina Legal e ninguém o quer. No IML, além de Rui e Luz, aparece Ana Paula Reis, a quem Rui explica que Cândida não desejava a sua presença, e Lenita Gentil, que soube da notícia da Lusa.Em frente à Igreja de São João de Deus, onde se realizará o velório, Madi, do ex-duo Sérgio e Madi, é o primeiro a chegar. Espera três horas pela amiga, flores brancas na mão: "São flores brancas, o nome dela diz tudo, aquilo era um anjo".Povoado de amigos, curiosos, jornalistas e simples oportunistas, o velório e funeral de Cândida transformam-se mais tarde num desagradável folclore. De todos os cantos surgem "amigos". Um homem apresenta-se como "afilhado de baptismo", uma rapariga como "filha", um agente distribui cartões e diz "saber muitas coisas", o ex-marido é convidado a sair do velório por Rui Amorim. "Era a vontade da Cândida que ele e a Paula não estivessem presentes", explica Rui. Emanuel Rosado afirma ter recebido duas chamadas ameaçando-o se fosse ao funeral: "Alguém dizia que me enchiam de pancada se lá fosse". O funeral, uma feira de vaidades, esvazia por volta das 16h00. "Deixei que toda a gente saísse e por volta das cinco perguntei ao guarda onde era o talhão dos artistas e fui lá", diz Emanuel. Para Maria da Luz, o inferno parece não ter fim. Todas as noites depois do funeral, o telemóvel toca, ela atende, ouve primeiro a cantora a cantar e depois uma voz a imitar Cândida: "Bebé, boa noite..." Como ela lhe dizia todas as noites. Cândida Branca Flor terá atingido finalmente em morte a paz que sempre procurou em vida. Quem sabia os pormenores da sua destruição e não procurou ajudá-la, ainda vive. "Há pessoas do meio artístico que sabiam desta podridão toda e não a ajudaram. Como é que se levantam de manhã? De consciência tranquila? Devem precisar de comprimidos, como a Cândida", diz Aristides Teixeira. Quem lhe estragou a vida ainda vive. "Hão-de morrer com o que fizeram atravessado na garganta toda a vida. Ela está em paz, eles não estão", diz Fernando Santos.