Eugénio de Andrade: Um poeta que ama a exactidão
Porque a primeira edição, de autor e de 2000, estava praticamente esgotada, "Morreste-me", de José Luís Peixoto, foi agora reeditado. Trata-se de um texto meticuloso e convulsivo sobre a ausência do pai, sobre a dor irreparável dessa perda.
O pretexto era a recente atribuição a Eugénio de Andrade do Prémio Camões, mas a conversa acabou por se estender em múltiplas direcções. Das suas predilecções em matéria de poesia portuguesa actual aos textos sobre a sua própria obra que mais o tocaram, dos seus rituais de escrita ao seu amor pela exactidão, das leituras de juventude às paixões mais perenes, entre as quais se conta Aquilino Ribeiro ("um homem que [o poeta coloca] ao nível de Fernando Pessoa"). Segue-se uma conversa solta, reorganizada tematicamente.Juízos Ao longo de décadas, muito foi sendo escrito, em livros e artigos, sobre a poesia de Eugénio de Andrade. Num balanço geral, o poeta acha que não tem razões de queixa. "Muitas dessas abordagens focam aspectos importantes da minha obra. O que haverá é, talvez, nos livros mais recentes, algumas novas direcções que podem baralhar o jogo." Do que reteve na memória, destaca "Uma Espécie de Música", de Óscar Lopes: "Creio que se encontram nesse livro algumas das coisas mais notáveis que foram ditas sobre a minha poesia." Mas lembra, também, por exemplo, "um ensaio excepcional" de Eduardo Lourenço que serviu de prefácio a uma das suas primeiras recolhas antológicas.Entre esses olhares exteriores que mais o tocaram, contam-se ainda "um texto muitíssimo bonito que Jorge de Sena escreveu para uma edição de 'As Mãos e os Frutos'", os diversos textos que Joaquim Manuel Magalhães lhe dedicou - "todos eles são importantes" -, e ensaios ou livros de Ángel Crespo, Arnaldo Saraiva, Luís Miguel Nava ou Carlos Mendes de Sousa. Recorda-se ainda de ter achado "muito interessantes" um conjunto de leituras da sua obra da autoria de Eduardo Prado Coelho, ao que parece nunca publicadas. "Mandou-me as primeiras cinquenta páginas de um ensaio que se destinava, julgo eu, a uma tese de doutoramento. Mas creio que depois o trabalho acabou por ser abandonado e aquilo ficou inédito." E não se esquece, finalmente, de Vitorino Nemésio, que já em 1948, a propósito de "As Mãos e os Frutos", mencionava a "leveza" desta poesia. "Há um ensaio do Thomas Mann onde ele diz que a leveza era uma coisa que o Goethe tinha na mais alta estima; considerava-a a suprema conquista da arte."AutenticidadeNão deve haver autor português que tenha sido mais imitado do que Eugénio de Andrade. Este desenfreado epigonismo pode mesmo "levar o poeta, ao fim e ao cabo, a detestar a sua própria poesia". É também por isso que em cada novo livro que escreve Eugénio tenta escapar ao anterior. "Comecei a fazê-lo já com 'As Mãos e os Frutos', que é também o primeiro livro em que apareço de corpo inteiro, mas em todos eles procurei sempre acrescentar qualquer coisa à minha própria linguagem". Dá um exemplo: "Se pegar num poema como 'Green God', escrito há muitos anos, e em 'Manhã de Junho', do próximo livro, até pode dizer: 'Isto parece de poetas completamente diferentes!'." No entanto, apesar de todas as dissemelhanças, crê que os aproxima "um mesmo rigor da linguagem, uma musicalidade, um espírito selectivo relativamente às palavras, procurando que sejam, ao mesmo tempo, as mais simples e as mais expressivas". Eugénio não prescinde deste "cordão umbilical", no qual vê "um sinal de autenticidade". Gosta dessas palavras que mostram, ao mesmo tempo, a sua "fascinação pela matéria" e o seu "enorme desejo de a transcender". Sinais Olhando para todos os livros que publicou, o poeta acha que, em comparação com outras obras contemporâneas, escreveu pouca poesia. "Cabe toda em quatrocentas e cinquenta páginas, e é escrita desde 1945, quando comecei 'As Mãos e os Frutos'. Já nem falo dos primeiros poemas, como a 'Canção', que é dos dezasseis ou dezassete anos, quando eu ainda ia, de Lisboa, passar as férias grandes à Póvoa de Atalaia". Este poema, um dos poucos que salvou dos seus primeiros livros, continua a abrir as sucessivas edições da sua obra poética. Não é por acaso: "Está ali para marcar que a minha poesia parte dos Cancioneiros; porque a verdade é que eu quis-me sempre poeta português."É certo que nunca utilizou, num poema, termos como "fado" ou "Portugal", ou "caravela". E mesmo a omnipresente "saudade" só uma única vez comparece na sua poesia. "Escrevi-a num poema de 'As Mãos e os Frutos', e andei a vida toda a pensar em eliminá-la, porque sinto que há palavras que se gastaram". Sublinha a "alta conta" em que tem Pascoaes e a amizade que o ligou ao poeta de Amarante, mas é-lhe indiferente toda a especulação que se fez em redor da palavra "saudade". Eugénio prefere modos mais discretos de mostrar que é "um poeta que se insere numa tradição". Recorre a "pequeninos sinais", como lhes chama. "Uso uma palavra que me aproxime de Cesário, 'exíguo', ou 'breve', como Pessanha, ou 'matutina', como Camões." EscritaCom um novo livro já pronto há algum tempo, a poesia não tem solicitado Eugénio. "Há um dia em que, como já disse, preciso do papel como de um corpo - quando eu necessitava de corpos -, e se isso acontece, se surge esse primeiro verso dado pelos deuses, de que falava o Paul Valéry, aí eu luto para conseguir o poema. Mas não forço nada. Não tenho essa disciplina de todos os dias, honestamente, escrever uma linha."E mesmo esse primeiro verso vindo do alto, não é, explica, o primeiro verso do poema que acaba por escrever. "Às vezes abandono-me ao papel e vou escrevendo, sem qualquer controle, vinte ou trinta versos. Depois páro e leio. E de tudo o que escrevi, salta-me um determinado verso. Esse é que verdadeiramente irá ser o primeiro." Passa-o então a limpo e inutiliza tudo o resto. A partir desse momento, já não existe qualquer automatismo e começa "a vigilância do poema". Mas Eugénio sente muitas vezes que as coisas escapam ao seu controle: "É como se as palavras se chamassem umas às outras, e se fosse assim construindo, aos poucos, essa arquitectura verbal, esse objecto." Um poema de doze ou treze versos exige-lhe, "na melhor das hipóteses, uma semana, às vezes de trabalho duro". Leva o poema que anda a escrever para a cabeceira da cama. E é frequente rasgá-lo na manhã seguinte, para depois o reescrever de memória, com alterações. "Procuro uma arquitectura límpida, um ritmo sem interrupções. Às vezes com 'staccati', com uma expressão que não parece imediatamente fluente, mas tudo isso é já deliberado." Poemas que não tenham tido emendas, lembra-se apenas de dois. O célebre poema à mãe, que foi escrevendo enquanto descia a Avenida da Liberdade, em Lisboa, e um outro, escrito na secretária de um posto médico onde tinha ido fazer uma inspecção. Ao primeiro acabou, recentemente, por lhe alterar uma palavra. "Ficou melhor, mas é uma coisa que não se nota." Corrije: "O Luís Miguel Nava notaria, nem que fosse uma vírgula." AcasosAlguns dos melhores poemas de Eugénio de Andrade são em prosa, a começar por esse longo texto intitulado "Mães", que o editor Manuel Hermínio Monteiro seleccionou para a sua "Rosa do Mundo" (Assírio & Alvim, 2001). Mas não faltam outros notáveis exemplos em livros como "Memória Doutro Rio" (1978) e "Vertentes do Olhar" (1987). Também os seus volumes de prosa em sentido estrito - "Afluentes do Silêncio", "À Sombra da Memória" ou "Rosto Precário" - têm uma qualidade de escrita que ninguém ousará pôr em causa. No entanto, se a escrita dos primeiros obedeceu a uma deliberada intenção de contribuir para o poema em prosa escrito em português - "uma das coisas mais fascinantes que li em toda a minha vida foram as 'Illuminations', do Rimbaud, e era com um livro daquele tipo que eu sonhava" -, já os segundos nasceram mais ou menos por acaso. "Quem inventou esses meus livros foi o Cruz Santos. Quando ele tinha uma editora [a Inova], apareceu-me um dia a dizer que gostava muito de me propor fazer um livro de prosa." A ideia surpreendeu o poeta que, inicialmente, não percebeu sequer muito bem de que prosas se poderia estar a falar. O editor lembrou-lhe então, entre outros, os textos que Eugénio fora fazendo para os catálogos de alguns dos seus amigos pintores. Ao que o poeta respondeu: "Nem pense nisso. Não tem interesse nenhum." Cruz dos Santos retorquiu: "Mas autoriza-me a fazer o livro?" Resposta: "Bem, se acha que sim, faça-o." O livro, explica Eugénio, veio a chamar-se "Os Afluentes do Silêncio". Vai em oito edições. RomancistasEmbora na sua juventude tenha sido um apaixonado leitor de romances, Eugénio nunca sentiu a tentação de os escrever. "Há obras prodigiosas, claro que há, mas como tenho a certeza de que nunca serei capaz de fazer alguma coisa com a altura de um 'Guerra e Paz' ou de uns 'Irmãos Karamazov' não vale a pena." De resto, lê agora poucos romances. "Só leio os dos amigos. Acabei os três últimos livros do António Lobo Antunes e estou a preparar-me para o último da Agustina." Os problemas que tem tido com os olhos tornam-lhe hoje penoso ler romances muito extensos. Mas eram justamente esses os que preferia. "Tinha a paixão dos livros grandes, como a 'Montanha Mágica', e ainda há dois anos reli a biografia do Thomas Mann sobre José." Quando lhe apareceram as primeiras dificuldades de visão estava a reler, "com grande encantamento", a "Viagem Maravilhosa de Nils Holgerson", de Selma Lagerlöff. Além dos romancistas - Tolstoi, Dostoiévski, Thomas Mann, Kafka "e, evidentemente, Proust" foram alguns dos autores que se lembra de ter lido de fio a pavio -, Eugénio foi também um leitor ávido de alguns ensaístas e filósofos. "Não os tipos dos sistemas, que não são muito do meu gosto, mas gente que escreve como um Platão ou um Nietzsche." Em língua portuguesa, continua a admirar Eça de Queirós e Guimarães Rosa. E Aquilino Ribeiro. Deste último não hesita mesmo em afirmar: "É um homem que ponho ao nível do Fernando Pessoa. São para mim os dois grandes escritores portugueses do século XX." Tem pena de que o autor de "A Casa Grande de Romarigães" não seja mais lido, mas pensa que isso se deve ao facto de Aquilino, "como Camões", ser um escritor difícil. Surpreendeu-o que a escolha de sonetos camonianos organizada para a Assírio & Alvim não se tenha esgotado, como habitualmente acontece com os seus livros. Mas, explica: "Camões é difícil de ler, e grande parte dos leitores são preguiçosos; preferem a televisão, que realmente se dirige às pessoas, mas sobretudo à parte de baixo da cintura."ExactidãoUma das coisas que mais enfurecem Eugénio de Andrade é que lhe atribuam uma palavra que não seja do seu vocabulário pessoal. "Sinto uma enorme irritação: 'Eu nunca digo esta palavra. O que é que ela está aqui a fazer?!'". Felizmente, pode invocar precedentes ilustres para esta sua pequena idiossincrasia. "O Rilke tem uma definição assombrosa: 'Era um poeta. Odiava tudo o que não fosse exactidão.'" Uma frase que, claro, nem toda a gente subcreve. "Citei-a há dias a uma rapariga da SIC que veio cá por causa do prémio Camões, e ela perguntou-me: 'Mas isso não é exactamente o contrário do poeta?'" Eugénio constata a persistência "dessa concepção romântica da poesia, que, evidentemente, começa na escola". Os professores, diz, "não sabem ler um poema, lêem-no como se fosse um artigo da 'Bola'". E também não gosta do tom enfático com que "as pessoas do teatro, com raríssimas excepções, recitam poesia". Eugénio é consensualmente reconhecido como um excelente leitor dos seus poemas, e mesmo de poemas alheios. Mas diz que não percebe o que possa haver de "tão especial" no modo como os diz. "Limito-me a não comer as sílabas - e elas não se devem comer, porque, como se sabe, são venenosas -, a fazer as pausas nos sítios certos e a destruir toda a ênfase." Quando vai às escolas, é esse o conselho que dá: "Peguem num poema e leiam-no. Não é preciso mais nada."PredilecçõesA "Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa" que Eugénio publicou recentemente, e cuja tiragem inicial se esgotou num mês, passou a incluir, a partir da segunda edição, quatro poetas vivos: Sophia de Mello Breyner, Mário Cesariny, António Ramos Rosa e Herberto Helder. Não era uma escolha polémica, como o organizador pôde comprovar. Todas as pessoas a quem falou desta sua intenção, sugerindo-lhes que adivinhassem os nomes dos poetas que escolhera, "chegaram lá rapidamente". O poeta acha que é hoje possível "ver com muita claridade quem são as grandes figuras" da sua geração, que inclui, além dos citados, alguns poetas já desaparecidos, como Jorge de Sena e Carlos de Oliveira. Além de ele próprio, claro, que constitui a mais injustificável ausência da sua própria antologia.Já entre os poetas posteriores a Ruy Belo (1933-1978), com quem quis encerrar o volume, admite que as coisas possam ser um pouco menos óbvias. Mas destaca, ainda assim, os nomes de Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz e Fernando Assis Pacheco, aos quais acrescenta, entre os nascidos já na década de quarenta, outros quatro. "São os que me parecem ter já uma obra sólida e pelos quais se vê que a poesia portuguesa continua a ter um nível muito alto: João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, António Franco Alexandre e Nuno Júdice". E acrescenta: "Há outros poetas, entre os quais o Vasco Graça Moura e, mais recentemente, José Tolentino Mendonça."