Auto-retrato de um museu renovado

O Museu Nacional de Soares dos Reis reabre as suas portas no próximo dia 24. Na ocasião será inaugurado o novo espaço de exposições temporárias, projectado por Fernando e Bernardo Távora, com a mostra antológica "Francisco Vieira, o Portuense". A descobrir.

O Museu Nacional de Soares dos Reis (MNSR), no Porto, reabre as suas portas ao público na próxima quarta-feira, dia 25 - a inauguração oficial, para convidados, realiza-se no dia anterior. A reabertura marca o fim de um longo período de obras ligadas pelo fio condutor de um projecto de recuperação e expansão assinado pelos arquitectos Fernando e Bernardo Távora (ver caixa "O silêncio da sala fechada"). As derradeiras fases - a quinta, sexta e sétima, orçadas em um milhão e quatrocentos mil contos - foram totalmente pagas pela Capital Europeia da Cultura. Instalada no Palácio dos Carrancas - um edifício neoclássico construído pela família Morais e Castro nos finais de Setecentos e adaptado às actuais funções na década de 1930 - e com direcção de Lúcia Almeida-Matos (ver caixa "Directora na corda bamba"), a instituição portuense oferece agora uma exposição permanente com importantes núcleos dedicados à arte oitocentista: Soares dos Reis, Henrique Pousão, Silva Porto, Marques de Oliveira ou mesmo um "auto-retrato", de Aurélia de Sousa, recentemente apresentado na Royal Academy de Londres e no Guggenheim de Nova Iorque. Outras das grandes novidades e "conquistas" da reabertura do museu são a existência de um piso inteiramente dedicado às artes decorativas e de um espaço de cerca de 3000 metros quadrados que permitirá a realização de mostras temporárias - a primeira é a antologia "Francisco Vieira, o Portuense", comissariada por José Alberto Seabra Carvalho. O Mil Folhas propõe-lhe uma visita guiada pelas palavras de Lúcia Almeida-Matos.Quando o museu reabrir as suas portas ao público, pode finalmente afirmar-se que as obras chegaram ao fim?Absolutamente. O projecto dos arquitectos Távora fica completo. A realização da Capital da Cultura permitiu queimar algumas etapas, juntar várias fases - a quinta, a sexta e a sétima - e fazê-las todas de uma só vez.Quais são as principais novidades que o visitante irá encontrar no percurso expositivo permanente?O percurso permanente está naturalmente dividido em duas partes: o primeiro piso é dedicado à pintura e à escultura e o segundo às artes decorativas. Existe esta distinção muito marcada. No primeiro piso, as mudanças em termos de conteúdos expositivos não foram grandes; a diferença relativamente àquilo que existia tem antes que ver com três salas dedicadas à pintura e escultura portuguesa do século XX, que nunca tinham estado em exposição permanente.Qual é o período abrangido nessas salas?A primeira metade do século XX. Pretende-se uma conjugação com Serralves, que arranca assumidamente nos anos 60. Houve aquisições para esse novo núcleo?Algumas, mas, como é do conhecimento geral, as obras realizadas na primeira metade do século estão cada vez mais caras e, portanto, as compras terão de ser feitas lentamente. Embora seja exposto um pequeno núcleo do século XX, a própria colecção do museu tem muitas lacunas nessa época; para que esse núcleo tivesse alguma coerência expositiva foi preciso recorrer a depósitos de coleccionadores particulares e de outros museus do Instituto Português de Museus [IPM]. Quais são os artistas que vão pontuar esse segmento do percurso expositivo?No primeiro modernismo temos logo uma lacuna gravíssima na colecção: não temos nenhum Amadeo. Vêm Amadeos do Museu do Chiado, em depósito. Temos bons exemplos de Eduardo Viana e Armando Basto, em termos de pintura. Em termos de escultura, temos obras de Diogo de Macedo, de Francisco Franco, de Canto da Maia. Depois, passamos a um núcleo centrado naquilo a que chamo informalmente a "Escola do Porto", focando o papel que a instituição teve na formação de uma série de gerações de artistas que depois adquiriram relevância nacional. E teremos como figuras centrais Dórdio Gomes e, na escultura, Barata Feyo, que foi director do MNSR durante vários anos. O núcleo do século XX deve-se a Barata Feyo, que, nos anos 50, adoptou a atitude pioneira de comprar arte aos artistas vivos e até, em alguns casos, jovens - por razões óbvias, não se incluiu a ele próprio na colecção, mas o seu filho, João Barata Feyo, vai pôr aqui uma peça dele, entretanto estamos em negociações para conseguirmos um reforço. Haverá outras presenças de escultores formados no Porto, como Gustavo Bastos, Lagoa Henriques. Teremos também, na pintura, Augusto Gomes e Camarinha. E existirá um núcleo conotado com o grupo dos Independentes: Fernando Lanhas, Nadir Afonso, Júlio Pomar, Júlio Resende e Arlindo Rocha, com as primeiras esculturas abstractas.É verdade que Fernando Lanhas realizou um depósito no museu?Sim. O que por ele aqui foi depositado será visto na exposição; estamos a estudar outras hipóteses e, neste momento, na mostra, vamos ter duas pinturas e algumas pedras, precisamente porque a área dedicada ao século XX é pequena e nós temos de ter algum equilíbrio. Do Júlio Pomar vem uma pintura que pertence a Lanhas e o arquitecto Fernando Távora também vai colocar em depósito uma outra obra de Pomar.Outra coleccionadora que irá depositar obras é Inês Burmester [mãe de Pedro Burmester, Gerardo Burmester e Rita Burmester]...Os Nadir Afonso são dela. E vai também depositar pintura de António Carneiro, de Júlio Resende e dois Alvarez.São depósitos a longo prazo?São depósitos por um ano. Não quer dizer que não possam ser renováveis ou até substituídos por outras peças dos mesmos coleccionadores. Aliás, a ideia é ir sensibilizando os coleccionadores no sentido de podermos manter esse núcleo com a coerência necessária, com empréstimos dos mesmos ou de outros. A minha esperança é que outros coleccionadores sigam o exemplo. Entretanto, há que poder ir-se comprando. Essa hipótese está salvaguardada junto do Instituto Português de Museus?O IPM tem todo o interesse em que isso possa acontecer. Também depende um pouco da oportunidade: é preciso que as coisas surjam no mercado e que existam os fundos necessários para as comprar. Ao comprar para o museu, o IPM tem de ter a noção da qualidade daquilo que está a adquirir, até porque não pode comprar muitas peças do mesmo autor. Se vamos comprar uma obra, ela terá que ser emblemática: não é porque um Amadeo está no mercado que se vai a correr comprá-lo. Quais são as suas prioridades?Gostaria de ter um Amadeo e um Júlio Pomar. As obras que vão ser depositadas são importantes e deveriam ser compradas pelo museu. Nós não temos nenhum Nadir daquele período, que é aquele que nos interessa. O importante é oferecer ao público uma exposição com princípio, meio e fim, com coerência e com boas peças. Se aquelas obras pertencem ou não ao museu, é importante, mas não é a primeira prioridade. A primeira prioridade é ter as peças em exposições; depois, aos poucos, iremos adquirindo.O museu é sobretudo conhecido pelo espólio do século XIX...Esse circuito não vai ser muito alterado. Vai faltar-nos o Vieira Portuense, porque temos a exposição temporária que lhe é dedicada. De resto, não há grandes alterações a não ser algum reforço da parte dos finais do século XIX, aquilo a que se pode chamar a segunda geração naturalista, para onde vai, por exemplo, o António Carneiro depositado por Inês Burmester. Na última fase de abertura do museu, esse núcleo não estava exposto, mas já tinha estado antes, portanto não é propriamente uma novidade.É no segundo andar do museu que se encontram algumas das novidades...Sim, esse piso é dedicado às artes decorativas, que não são expostas há muitos anos. Até mesmo aquelas pessoas que conheceram as peças vão ficar surpreendidas. O espaço está muito bonito, foi uma das intervenções mais felizes do arquitecto Fernando Távora. Nesse piso é dada uma particular atenção às peças de faiança, uma das secções mais fortes da nossa colecção de artes decorativas. Depois, temos ourivesaria e mobiliário, temos a sala oriental e a joalharia e os vidros.Quando fala na "intervenção feliz" de Fernando Távora, quer destacar o cuidado que o arquitecto teve na recuperação das salas palacianas oitocentistas?Há aí algum equilíbrio que é difícil de conseguir, mas que é importante. Neste momento isto não é um palácio, é um museu e, portanto, não convém estar a puxar muito pelo lado do palácio. Ainda assim mantiveram-se duas salas que, até em termos de conservação, estavam mais fiéis àquilo que teria sido originalmente a casa. Quando falo em intervenção feliz é precisamente pelo facto de o arquitecto ter conseguido esse equilíbrio. Verificamos que estamos em divisões especiais: não são salas de museu triviais, mas ainda assim nunca se pretendeu uma reconstituição do palácio.No convite para a inauguração aparecem três obras: "O Desterrado", de Soares dos Reis, "A Senhora Vestida de Preto", de Henrique Pousão, e uma jóia. Vão ser estes os ícones do museu?Há, mais uma vez, um equilíbrio que é necessário manter. Não posso descaracterizar o museu; as peças são realmente emblemáticas. O museu chama-se Soares dos Reis, tem o grande espólio do escultor, tem um espólio do Pousão, que é muitíssimo importante, e a componente de artes decorativas é incontornável. A tónica num aspecto mais contemporâneo vai ter que se ir conquistando, e sempre de uma forma equilibrada. Renovamos a imagem gráfica do museu, por exemplo. Vamos tentando alterar a imagem um pouco parada no tempo que o museu tinha, não propriamente deixando de mostrar o que contém, mas tentando olhar os seus conteúdos de uma forma contemporânea - e aqui vão encaixar-se, já este ano, alguns projectos de arte actual, como o de Ângela Ferreira.Essa integração será feita à semelhança do programa promovido no Museu do Chiado?A minha ideia não é seguir por aí, até porque penso que o Museu de Serralves preenche bem a área contemporânea. Numa primeira fase, pode ser que isso se altere. Os projectos de arte contemporânea passarão por convites feitos a artistas para tratarem aquilo que existe aqui: um artista, uma obra ou o próprio museu. Haverá múltiplas possibilidades.Já está definido o programa do museu para o próximo ano?Sim, em termos de linhas programáticas, para o próximo e até para os anos seguintes. Não estão definidas exposições concretas. Por exemplo, aquilo que eu gostaria que se fizesse em termos de exposições temporárias seria, anualmente, uma mostra sobre um artista presente na colecção, como está a acontecer com o Vieira; outra que parta de um artista da colecção, mas que, depois, o contextualize na cena internacional; e sempre uma exposição dedicada a algum aspecto das artes decorativas e um projecto de arte contemporânea. Estas são as linhas gerais que procurarei manter. Assim, o público saberá sempre que tipo de exposições poderá ver no MNSR.

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