Morreu "a mãe do Watergate"
O mundo só conheceu o seu nome em 1973, com a publicação do escândalo Watergate, que obrigaria o Presidente Richard Nixon à demissão, mas Katharine Graham já era uma dama de primeira grandeza da aristocracia americana muito antes disso. Primeira grandeza pelo nascimento, pela fortuna, pelo poder, mas antes de mais pelo estilo que imprimiu ao jornal de que foi proprietária e que se tornaria sinónimo de excelência e de independência jornalística: o "Washington Post".Durante as suas primeiras décadas, Katharine Graham viveu a vida normal de uma jovem de uma família rica da costa Leste americana (a fortuna do pai foi avaliada entre 30 e 40 milhões de dólares em 1915), sem faltar a frequência de Vassar College e o baile de debutantes. A sua biografia começou porém a divergir da norma com o primeiro emprego, como repórter do "San Francisco News", em 1938, uma altura em que, nos jornais, as mulheres eram tradicionalmente secretárias.Em 1940, o casamento com Philip Graham, que se irá ocupar do "Washington Post" que o seu pai comprara completamente falido em 1933 e que entrega ao genro, mergulha-a durante mais de vinte anos na vida da esposa exemplar americana. Philip Graham conseguirá a proeza de transformar o "Post" num exemplo de bom jornalismo e consegue além disso, depois de mais de vinte anos de prejuízos, tirar o jornal do vermelho e colocá-lo numa posição de evidência entre a imprensa americana, com uma reputação apenas aquém do gigante "New York Times".Os seus detractores disseram durante anos em tom crítico que Kay viveu os primeiros vinte anos à sombra do pai e os segundos vinte à sombra do marido. Certamente. Mas todos concedem que os terceiros vinte anos foram gloriosamente seus. A morte do marido obrigou-a, aos 46 anos, a pegar nas rédeas de um jornal cuja dimensão e poder a intimidavam a ela própria. Depois, foi uma história de sucessos, muitos deles em mano-a-mano com o mítico director do "Post", Ben Bradlee.A primeira grande história da lenda foi a publicação dos "Pentagon Papers", uma série de documentos secretos produzidos pela Rand Corporation sobre a guerra do Vietname, que uma "fuga" faz chegar ao "Post" e ao "New York Times". A publicação da série de artigos sobre os documentos, altamente comprometedores para a Administração americana, é proibida pelos tribunais, mas o "Post", com Graham e Bradlee à cabeça, combate a decisão judicial e consegue ganhar o direito à publicação. A batalha jurídica confere um imenso prestígio e visibilidade ao "Post", mas é o escândalo do Watergate, investigado pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward, que lhe dá uma projecção mundial. A persistência dos repórteres atrás de uma história que primeiro parecia banal, o risco (calculado, mas real) incorrido pelo jornal ao explorar conjecturas que poderiam não se ter confirmado, a discussão interna sobre a confirmação das informações, a forma como o jornal resistiu a pressões e continuou a publicar tornaram o caso num exemplo de investigação jornalística e trouxeram a fama a Bernstein e Woodward (diga-se que este último a explorou mais a fundo). Mas o Watergate nunca teria existido se o "Post" não tivesse uma proprietária como Kay Graham, disposta a pôr em prática os preceitos do seu pai, Eugene Isaac Meyer, um multimilionário que considerava que a fortuna trazia imperativos de ordem ética e obrigações de solidariedade social e que escreveu, em 1935, os sete princípios por que se deveria reger a actividade editorial do "Washington Post":"1 - A primeira missão de um jornal é dizer a verdade, tanto quanto a verdade possa ser determinada.2 - O jornal deverá dizer TODA a verdade, tanto quanto a possa determinar, sobre todos os assuntos importantes que digam respeito à América e ao mundo.3 - No seu papel de disseminador de notícias, o jornal deve observar a mesma decência que é de esperar de um cavalheiro.4 - Tudo aquilo que o jornal imprime deve ser uma leitura adequada para os jovens, assim como para os idosos.5 - O jornal só tem deveres para com os seus leitores e para com o público em geral, e não para com os interesses particulares do seu proprietário.6 - O jornal deve estar preparado para sacrificar as suas fortunas materiais na prossecução da verdade, se isso for necessário para o bem público.7 - O jornal não será aliado de nenhum interesse particular e será justo e livre e íntegro na sua visão das questões públicas e dos homens públicos".Katharine Graham ganhou em 1998 um Pulitzer na categoria de Biografia, pelas suas memórias ("Personal History"). Mas aquele de que se orgulhava mais era o outro Pulitzer, que ganhou não em nome pessoal mas em nome do "Post", em 1973, pela investigação do Watergate. Foi na categoria Serviço Público.Ontem, aos 84 anos, Katharine Graham morreu num hospital do Idaho, depois de uma queda no sábado passado lhe ter causado graves ferimentos na cabeça e a ter deixado inconsciente desde então. Graham estava no Idaho a participar numa conferência de editores de jornais, praticando o que sempre defendeu: "To love what you do and feel that it matters - how could anything be more fun?" ["Gostar do que se faz e sentir que o que se faz é importante - pode haver algo mais divertido?"]