Daniel Faria: o rapaz raro
Poucos poemas em língua portuguesa nos últimos 20 anos terão o impacto verdadeiro dos de Daniel Faria. O seu último livro, "Dos Líquidos", publicado no início deste ano, já foi póstumo.
Sophia de Mello Breyner Andresen foi, para ele, o princípio da poesia. E quando chegou a vez de Sophia o ler, disse: "Versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós." Essa é a síntese, tudo o que importa. É da poesia que partimos, mesmo quando vamos de casa em casa, à volta da vida. Para saber um pouco mais, para voltar a não saber. Vale só por isto, a aproximação a uma biografia. Quando lhe pediram um auto-retrato, Daniel Faria (1971-1999) escreveu que era "um rosto que há-de vir". E assim será, para o leitor dos poemas. Acreditamos que na poesia portuguesa dos últimos 20 anos poucos tenham vindo à luz assim, com um impacto de pedra. O Daniel coleccionava pedras. É uma pequena coisa. Com as vozes de 18 pessoas e a presença de alguns lugares, esta é uma história de pequenas coisas, ao longo de quatro casas, ao longo do tempo. Depois, o que mais importa está nos livros, em cada mão.Basta respirares / E olharei em redorNesse tempo, o lugar ainda se chamava Além-do-rio, e a hora era a de Sábado de Aleluia, na memória da mãe: "Foi pelas oito da noite. Eu estava em casa, senti que ele ia nascer, a minha irmã veio para a minha beira, e ele nasceu tão rápido que a parteira não chegou a tempo." O segundo filho de Fernanda Nogueira da Cunha, filha e neta de camponeses, nascia-lhe assim, "com o tempo", aos nove meses de gravidez, à hora em que se começa a cantar a ressurreição - "uma alegria" mais, sendo ela católica praticante.Hoje o lugar já não se chama, oficialmente, Além-do-rio (apesar de a placa ainda lá estar), mas sim Alto Trigais, freguesia de Baltar, concelho de Paredes, 25 km a norte do Porto. E Sábado de Aleluia é, desde o Concílio Vaticano II, Sábado Santo.A primeira manhã de Daniel foi, então, a de um Domingo de Páscoa, nessa casa ainda só térrea, erguida num monte da sua avó materna, Ermelinda. Para trás campo, para a frente vinhas, logo abaixo o tráfego da estrada Porto-Vila Real, e em volta fábricas, crescendo. Ainda hoje é assim, com menos campo, mais casas e mais pisos nas casas: a dos pais de Daniel e as de seus tios, que se foram estabelecendo naquela subida, perto da primeira casa, a de pedra, a da avó. O único que não mora lá (hoje, professor de filosofia em Penafiel) foi o antecedente familiar no estudo das letras e é dele que vem o nome Daniel Augusto, por vontade da sua irmã, madrinha (e tia) de Daniel. Todas as raízes (os avós paternos eram de uma freguesia vizinha, Mouriz) apontam para estas terras roubadas aos poucos pela indústria - em que o pai de Daniel também foi operário mais de 30 anos. O rio do nome é quase um riacho no Verão. Há algum milho, alguma batata, criam-se galinhas e coelhos, em Setembro vindima-se o bago verde e faz-se o vinho. Coisa poucochinha, mas bastante para todos terem de ajudar. E o Daniel, como todos, primos, irmãos, desde pequeno, a cegar erva, a pisar uva, a apanhar maçãs, pêras, laranjas, diospiros, no quintal: "Tinha muita força, era saudável, até gordinho, só depois é que amiudou", recorda a mãe, "se fosse preciso, pegava num saco de batatas com 50 quilos, fazia tudo. Mas do que gostava mesmo era de ler, desde a primária, apanhava qualquer coisa com letras, uns bocados de jornal que fosse... Era muito sossegado, tinha muita paz, conversava-se com ele e ele dava paz." Paulo, irmão mais velho três anos - com a mesma diferença, os mais novos são Miguel e depois Clara - conta que "se lhe dessem a escolher entre ficar em casa ou ir para a praia, o Daniel ficava em casa." A praia, durante anos, em Agosto, era a da Luz, na Foz, Porto. "Ele não gostava, mas ia", acrescenta a mãe, "e voltava com búzios, conchas, caramujos, pedras. Depois fazia coisas, fazia presépios..." A paixão das pedras durou toda a vida. Cada amigo em viagem lhe foi trazendo uma. As mais pequenas e preciosas continuam na sua cela do Mosteiro de Singeverga, as maiores em casa dos pais. E o lugar de todas será o da palavra, tantas são as que vemos nos poemas. Que tenham começado por formar presépios, é o natural numa casa humilde em que a catequese, os retiros e a missa de domingo (até nas férias) faziam parte da vida das crianças. Fernanda Cunha recorda que "desde o jardim de infância" ele dizia que queria ser padre: "Eu sorria. Mas ele foi sempre dizendo, na escola, na catequese." Até que, no fim do ciclo, pediu para ir para o seminário. "Ainda lhe perguntámos se não queria fazer primeiro o liceu, aqui. Ele ficou calado, a pensar, e depois disse: se não têm nada contra, prefiro ir já."Põe uma escada e sobe ao cimo do que vêsO Seminário do Bom Pastor, à entrada de Ermesinde, divide-se por seis pavilhões, entre castanheiros, carvalhos, faias, pinheiros, e fieiras de hortênsias e rosas. Perdeu sossego desde que uma via rápida se atravessou ao fundo do parque. Mas quando o Daniel chegou, como "um miúdo de aldeia", conforme lembram os companheiros, ainda era um lugar de silêncio e pássaros.Aqui, o grande anfitrião foi o Padre Manuel Mendes, professor de português e apaixonado leitor, que lhe deu a ler Sophia e Eugénio de Andrade. "Contou-me que fazia poemas desde o ciclo. Tínhamos um jornalzinho, ele começou a escrever com entusiasmo e a passar esse entusiasmo aos outros. Era sereno, mas muito curioso, sempre a querer ir mais longe, a querer lidar com as coisas difíceis."Este padre e amigo - de quem Daniel se dizia herdeiro, no amor à poesia - não tem memória de uma adaptação difícil: "Ele era muito independente em relação à família. Desabrochou ali em Baltar como uma forma rara, e no seminário encontrou um espaço para crescer. Era muito bom aluno, gostava dessa vida regrada com horas para tudo, em que tinha tempo para ler, foi descobrindo música, teatro, marionetas, amigos com outras experiências."O enérgico colega de camarata Fernando Mota - hoje pároco em Santo Tirso - lembra que "o Daniel não se afirmou logo, não era um jogador de futebol, por exemplo, ficava a ver-nos, mas sempre se integrou".Fernando Nuno, colega de então e amigo de sempre - hoje, professor de filosofia no Porto -, recorda-se de "admirar o Daniel à distância, primeiro, e depois de ler por causa dele os contos de Sophia, "As Memórias de Adriano", da Yourcenar, o Michel Tournier, o "Crime e Castigo", de Dostoiévski, Raul Brandão..." Isto, algures entre os 12 e os 15 anos.O Padre Mendes confirma que nele "acontecia tudo muito cedo, muito depressa", chega a dizer que, apesar da diferença de idades, gostava de o ouvir "como um conselheiro".Do Bom Pastor, onde esteve três anos, Daniel segue para o Seminário de Vilar, no centro do Porto, onde, até ao 12º ano frequentará o liceu Rodrigues de Freitas. Começa a compor poemas torrencialmente, e a partilhá-los. Dá livros inteiros: "Traço Branco", "Pórtico", assinados ora Daniel Augusto, ora com pseudónimos como Germano Serra, quando se tratava de participar em concursos. Entre versos inocentes sobre o Porto, os pescadores, o campo, o amor, emergem já duas presenças: a morte e Deus. Conta-se que a professora de português, Rosa Maria Valente, de quem ele gostava muito, pensava a princípio que eram copiados.Literárias, não literais, seriam, de acordo com a memória de amigos, as inspiradoras dos versos de amor. "Não me lembro de conversarmos sobre raparigas, sempre achei que ele queria ser padre", relembra o jovem Padre Mota, "eu dizia-lhe que achava fascinante ter uma família, casar, e ele respondia que não tinha vocação nenhuma para casar. Gostava do seu mundo, de o partilhar, mas creio que a ideia de estar para sempre com alguém lhe fazia impressão. No entanto, lidava muito naturalmente com as raparigas." Reforça o Padre Mendes: "Era como se nunca tivesse sentido esse estremecimento do desejo, como se o lado carnal, de êxtase, que encontramos depois nos poemas, lhe tivesse sido dado como um arquétipo. Tinha uma enorme liberdade com as pessoas e as coisas." "Era sereno", conclui Fernando Nuno, "não por uma ausência do desejo, simplesmente não havia conflito."Com os amigos, constrói Daniel, no último ano de Vilar, e nos anos seguintes do Seminário da Sé (1989-94), a sua família de todos os dias, numa entrega e dedicação cada vez mais profunda. Os testemunhos dos próximos revelam uma capacidade de dádiva luminosa e inventiva, de que centenas de bilhetes, cartas, poemas, desenhos, colagens são vestígios apenas mínimos.De Fernando Nuno, tornou-se amigo fiel a partir de um episódio provavelmente único na sua biografia, uma bebedeira de geropiga: "Foi no último ano de Vilar, tínhamos ido passar um fim de semana fora, e estava um frio terrível. Havia uma garrafa de geropiga, e ele, como nunca bebia, ficou logo num estado lastimoso e acabou por vomitar no saco-de-cama. Eu emprestei-lhe o meu, e dormi só vestido, sem nada para tapar. Apanhei uma gripe feroz, que durou semanas." A partir daí, foi como ganhar um irmão: "Ele era de uma timidez paradoxal. Para um acto rotineiro, como ler nas celebrações, entrava-me no quarto a tremer meia hora antes, tinha horror a falar em público, apesar de cativar toda a gente quando falava. E depois, nas situações difíceis era de uma coragem incrível." Como no episódio da Rua Escura, uma viela do bairro da Sé, no Porto, dominada por toxicodependentes, no caminho entre o seminário e a faculdade de Teologia: "Normalmente eles não se metiam connosco. Mas uma vez, um segurou-me, a pedir dinheiro, a dizer que era seropositivo, com as mãos cheias de sangue. Os meus colegas viam aquilo e continuavam a descer. O Daniel foi o único que parou. Aproximou-se e disse: 'Então, há algum problema?' O rapaz fugiu." Nessa "entrega quase obsessiva aos amigos", segundo Fernando Nuno, "dizia que a melhor coisa que lhes podia dar era a poesia, e por isso escrevia para nós, muito, e assim se iam fazendo os livros." Foi justamente para este amigo que Daniel concluiu "Oxálida" (1992), seu primeiro volume publicado. O original, com as maravilhosas colagens coloridas, está hoje guardado no Mosteiro de Singeverga [ver reprodução nestas páginas]: "Um dia deixou-mo no quarto, simplesmente. E metia-me poemas debaixo da porta, nas férias escrevia-me quase todos os dias, quando fui para Braga estudar Filosofia mandava-me cartas com traduções de fragmentos dos pré-socráticos, traduzia do grego e ainda acrescentava os seus próprios fragmentos."O segundo livro publicado, "A Casa dos Ceifeiros" (Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia do Porto, 1993) - reúne pelo menos uma dezena de poemas que podem permanecer -, também começou assim, como um original com colagens, para um amigo. Mas não eram só as palavras, ressalva Fernando Nuno: "Ele dava tudo. Íamos ao quarto dele e era o essencial, alguns livros de poesia, as pedras... tinha pouco e dava tudo. Uma vez houve uns jogos florais em Braga e eu disse-lhe para concorrer. Fez logo um conto e um poema e ganhou nas duas categorias, aí uns 200 contos. E depois queria que eu ficasse com o dinheiro! Então passou a concorrer aos prémios para comprarmos uma casa aos nossos colegas que iam ser ordenados, chegámos a ir ver uma ao Marão... enchia-me de livros, de discos, tinha de me zangar com ele... era assim, vivia tudo muito intensamente." João Pedro - hoje padre, a estudar em Roma - era outra porta sob a qual Daniel passava poemas. E em Julho de 1991, como presente do primeiro passo para o sacerdócio, recebe um pote de barro: "Estava tapado com uma rolha de cortiça, e lá dentro, sobre 20 ou 30 búzios, havia um rolo de máquina de calcular aí com uns 100 metros, manuscrito. Era um poema." Chama-se "O País de Deus", permanece inédito e é, um pouco desdobrado, o que podem ver na capa deste Mil Folhas."A poesia, nele", recorda este amigo, "era a respiração, o veículo, o laço com os amigos. Iniciou-me em Drummond de Andrade, Rosalia de Castro, Álvaro de Campos, o primeiro livro de Eugénio que li foi ele quem mo deu."Fernando Nuno recorda-se de estar a estudar no quarto, com o Daniel a ler poesia em cima da cama: "Era bom aluno, mas não demasiado aplicado. A grande paixão dele era Herberto Helder. E depois Rilke, Hölderlin, Dante. Tinha uma capacidade surpreendente de absorção, era capaz de ler um poema e de o reproduzir imediatamente em voz alta. Um período, resolveu ler os Nobel todos, recitava-me a "Divina Comédia" e, quando lhe ofereci os "Cantos" de Ezra Pound pôs toda a gente a dizê-los." "Foi uma leitura épica", entusiasma-se Joaquim Santos - agora director espiritual no Bom Pastor. "O Daniel tinha sempre projectos fantásticos, queria ler as obras completas de Shakespeare... O Rilke, na tradução do Paulo Quintela, era fundamental para ele, como o Herberto. E depois Luiza Neto Jorge, Eugénio, Ramos Rosa, Sophia, Ruy Belo, Lorca. Foi com ele que conhecemos Drummond, Guimarães Rosa..."Os amigos, sobretudo Joaquim Santos e Fernando Nuno, retribuíam com música. Ouviam, com ele, Arvö Part, Hildegard von Bingen, Meredith Monk, John Tavenor, Keith Jarret, Jan Garbarek, Monteverdi "em doses intensas", "muito Bach". E o círculo de descobertas ia sendo alargado, literalmente, pelo projecto que Daniel animou no seminário, enquanto frequentava Teologia: o Círculo de Leitura(s). Joaquim Santos ainda guarda esses minuciosos papéis coloridos, moldados em triângulos, em esferas, que Daniel compunha, como quem convida a escutar: Rosalia de Castro, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond, ou, numa sessão histórica, Eugénio de Andrade, que nunca tinha posto os pés num seminário.A ida de Eugénio, em Fevereiro de 1991, recorda Fernando Nuno, "foi uma autêntica batalha campal" para Daniel: "Ficou exausto, havia oposições dentro do seminário, isso angustiou-o imenso. Depois correu muito bem, o Eugénio só não entrou na capela, lembro-me que se admirou por jogarmos futebol sem batina..." Eugénio de Andrade resume essa inédita aventura como "uma tarde divertidíssima" em que optou - "hoje já não o faria" - por ler alguns dos seus poemas mais "perturbadores": "Quando o Daniel veio convidar-me, aceitei com a condição de poder falar de tudo o que me passasse pela cabeça. E assim foi. Achei-o simpatiquíssimo, suspeitei que escrevia versos, mas ele não me disse nada. Havia nele uma transparência, um entusiasmo na fala que acabou por me levar, de degrau em degrau, ao seminário."A conquista de Eugénio não foi a única luta que Daniel, na sua vontade do melhor, travou no Seminário da Sé. Fernando Mota, que protagonizava "Crime na Catedral", a peça de T. S. Eliot que Daniel procurou encenar em 1994, fala "de alguma incompreensão" entre os superiores: "Ele empenhou-se imenso naquilo, quis um palco vindo de fora..." Julgava-se que seria emprestado, mas afinal era alugado, e houve uma conta inesperada para pagar. E depois, o grande impulsionador das experiências cénicas de Daniel, Padre Carlos Moreira Azevedo - hoje vice-reitor da Universidade Católica - acabou por voltar 'in extremis' ao seminário (onde fora director espiritual) para finalizar a encenação. O que também terá sido avaliado como pouco ortodoxo. Fernando Nuno sublinha que "o Daniel sofreu imensa pressão, até recriminação, nessa luta por investimentos invulgares".E cada dia somado a cada hora / não completa o tempoEm 1994, a um ano de se tornar sacerdote, Daniel decide sair do seminário e passa a frequentar a Faculdade de Letras do Porto. Tem concluída a parte curricular de Teologia - a tese, sobre a meditação da Paixão na poesia do frade arrábido Agostinho da Cruz (1540-1619), só viria a ser defendida em 1996 - e a certeza de que não quer ser pároco.Esta desistência não surpreende os mais próximos. Na memória de Joaquim Santos, vinha já desde o primeiro ano do Seminário da Sé a atracção pela vida monástica. Não a escondeu à família. "No segundo ano da Sé", situa a mãe, "disse-me que estava a pensar ir para os beneditinos, que se sentia chamado. Defendia a vida de pobreza, em comunhão. Aconselhei-o a acabar o curso."João Pedro fez o mesmo: "Ele foi a um retiro em Singeverga. Quando voltou, queria logo ser monge. Parecia-me uma radicalidade para a qual ele podia não dar resposta. Mas ele achava-se sem vocação para padre." Fernando Nuno, que saiu do seminário na mesma altura, recorda que "a ideia de ficar responsável por uma comunidade aterrorizava o Daniel". Fernando Mota também o tentou dissuadir: "Não o queríamos perder, tínhamos tanto orgulho nele. Eu achava que a Igreja não tem tanta qualidade que se possa dar ao luxo de desperdiçar uma pessoa assim." Mas mais do que a timidez, ou o receio de não saber liderar uma paróquia, havia essa primeira fulguração da vida no Mosteiro Beneditino de Singeverga. "Quando o Daniel veio em retiro, em 1990", lembra Dom Abade Luís Aranha, "tinha já esse desejo de vida monástica, o gosto do silêncio, da oração, da contemplação, da humildade. O apagamento, uma vida escondida. E a busca de Deus, em comunhão fraterna. Veio muito aqui, nesse ano, depois decidiu continuar o seminário. Mas sempre pensei que ele ia voltar." Carlos Azevedo tem uma carta em verso, datada de 27-12-91, na qual Daniel pede: "Não me deixes ser monge/ e diz a deus que se cale/ diz a deus que não chame/ pede a Deus como eu peço/ que não me roube os amigos/ que seria como roubar/ as flores todas dos montes/ e às crianças as suas cantigas." O que dá ideia da fractura aberta, desde a visita ao mosteiro. E se os anos seguintes foram de acalmia, segundo Carlos Azevedo, quando Daniel sai do seminário já tinha decidido ser monge: "Disse-lhe então: 'Tens que levar muita gente contigo, é bom que faças o curso de letras.' Achava que tinha de haver um espaço antes, em que conhecesse pessoas, se enriquecesse intelectualmente."Daniel aceita a sugestão do seu antigo director espiritual, que o acolhe então na casa da Paróquia do Marquês, no Porto. Para retribuir a hospedagem, dá cataquese e toma conta da portaria da igreja. Aos fins de semana, continua a fazer pastoral em Marco de Canaveses, actividade que já vinha do tempo de Teologia e através da qual conhecera um dos seus maiores amigos, Nuno Higino, o padre também poeta que ousou sonhar a nova igreja do Marco como "uma casa de Siza ou de Sophia". "A igreja estava em construção. E havia um grupo de teatro com jovens, que eu animava. Mas o Daniel tinha muitíssimo mais talento, e começou a ensaiar com eles. Chegava ao sábado à tarde, de comboio, trabalhavam, e depois ficávamos a conversar noite dentro, sobre poesia. Às vezes, punha os jovens todos a ler poemas, incentivava-os a escrever. Tinha uma capacidade inventiva, estava sempre a imaginar coisas inesperadas." A convite de Nuno Higino, viajou Daniel a Nova Iorque e à ilha do Sal, Cabo Verde. "Em Nova Iorque ficou entusiasmado com o formigueiro do metro, das ruas, com os museus, as livrarias e os esquilos em Central Park. No Sal, apanhou um escaldão e ficou como um Cristo." Para a paróquia do Marco, Daniel encenou "As Artimanhas de Scapin" e "Auto da Barca do Inferno". Do laço que o uniu a esse grupo - em Natais, Páscoas, acampamentos nas férias - diz o afecto até às lágrimas de Rosália Monteiro, uma das jovens actrizes. Escutem-na, sem interrupções: "A primeira vez que o vi foi quando ganhou uns jogos florais da paróquia. Subiu ao palco e parecia um anjo, uma pessoa muito leve. Depois, viveu connosco, e no meio da nossa algazarra não precisava de falar alto, toda a gente se calava. Ele tinha uma grandeza humana e espiritual, mostrava-nos sempre o outro lado quando éramos mesquinhos, utilizava muito a palavra 'belíssimo' para pequenas coisas que nós, sem ele, não víamos. Chamávamos-lhe o nosso grande mestre. Rezávamos, íamos ao café, a um bar, às vezes à praia, à noite, e ele parecia alguém frágil com muita gente à volta. Mas a fragilidade dele era uma grandeza para nós. Perante a humildade não há palavras, e ele não falava muito: comunicava muito. Não o vejo numa paróquia a resolver problemas: um dia, levou-nos a Singeverga, e foi aí que o comecei a ver: 'O Daniel vai ser monge.' Mostrou-nos aquilo com uma alegria."No Porto, durante a semana, além das aulas, Daniel ia muito ao cinema - entre os favoritos, Bergman, Tarkovski, Dreyer, ou Lars von Trier, pelo menos "Ondas de Paixão", que viu três vezes - e ao teatro, com Carlos Azevedo.Um dos seus professores favoritos na faculdade era Adriano Carvalho, que dava literatura espanhola. "O Daniel, num entusiasmo, ia ensaiando a pronúncia, pelo corredor lá de casa." Com Arnaldo Saraiva - antes, seu convidado no seminário, para falar de Drummond - estudou, dois anos, literatura brasileira: "Dei-lhe 17, foi a nota mais alta. Era muito discreto nas aulas, nunca mostrava que sabia, e sabia." Vera Vouga, a professora de quem se tornou mais próximo, confirma essa discrição nas aulas de Introdução aos Estudos Literários: "Não sabia que tinha aquele poeta ali. Quando pedi aos alunos que fizessem uma espécie de auto-retrato, o texto dele chamou-me a atenção. Emprestei-lhe a tradução das "Elegias" de Rilke da Assírio, uma outra de Blake, mas ele falava pouco. Só soube do que escrevia muito mais tarde, já ele estava em Singeverga."Desse tempo pré-mosteiro, a "amiga electiva" - como a descreve Fernando Nuno, o único dos companheiros de seminário que a terá conhecido - é uma colega que com ele se cruzava em duas cadeiras e a quem chamaremos apenas Isabel: "A primeira vez que o vi foi em 1995, numa aula de literatura portuguesa. Ele leu um poema de Antero de Quental e eu olhei para trás, a ver quem era. Nunca tinha ouvido nada assim. No fim da aula fui falar com ele. Como morávamos os dois no Marquês, começámos a ir e vir juntos." E Daniel mostrou-lhe o que escrevia: "Era diferente de todos os homens que eu conhecia, do meu namorado, dos meus amigos. Com ele, podia partilhar tudo, e ficava maravilhada a ouvi-lo. Aparecia-me à porta para irmos ao cinema, ofereceu-me um CD da Adriana Calcanhotto, que ele adorava, lia-me poemas das "Flores do Mal", a última página da "Divina Comédia", em italiano, as coisas dele. Eu pensava que ele ia escrever sempre. Quando veio a minha casa anunciar-me que ia para Singeverga, falou com tanta vontade... Fiquei feliz, mas para mim foi terrível pensar que ia ficar sem ele. Falei-lhe na faculdade, ele tinha sido convidado para assistente... Mas não queria nada disso, e eu já sabia, ele tinha-me falado do mosteiro. Costumava dizer-me que há pessoas que estão nesta vida para escolher e outras para serem escolhidas. Ele tinha sido escolhido. Acho que nunca teve dúvidas."O Padre Nuno, capelão do hospital de São João e amigo de Daniel, vê as coisas assim: "A diferença entre monge e padre é a mesma que entre anjo e homem, a maior parte do anjo é por dentro, a maior parte do homem é por fora. O Daniel estava para monge, não para outra coisa. Era uma lâmina impressionante, penetrava o sentido das coisas e não se deixava aprisionar, não criava dependências."E nunca mais acabarás de regressarA 1 de Agosto de 1997, O Padre Mendes - o de Eugénio e Sophia - recebeu um postal de Daniel com um envólucro de papel vegetal em que, na diagonal, estava cem vezes escrito: "Em Outubro entro em Singeverga."Os poemas de "Homens que São Como Lugares Mal Situados" - o mais límpido dos seus livros - surgiram quase sem emendas nesse Verão, em "estado de graça", segundo o próprio Daniel. Tinha acabado de confirmar que seria monge.O Mosteiro de Singeverga, a 15 quilómetros de Santo Tirso, é um edifício dos anos 50 cercado por campos: pomares, videiras, milho, um bosque. Nesta época do ano, sabe bem o fresco e a sombra, quando se entra. Aqui moram 33 monges. Vemos dois, um mais velho - Dom Abade Luís Aranha - e um mais jovem, sorridente - Frei Bernardino. Caminham dentro do hábito negro como se deslizassem. Levam-nos ao Claustro: "O Daniel gostava muito de aqui estar", diz Dom Abade. Frei Bernardino faz o inventário das flores: camélias, rosas, azáleas, e, subindo alta, entre todas, uma magnólia branca, com a copa frente a uma janela do terceiro andar. Será a "magnólia de verdade a todo o redor" do último ciclo de poemas de Daniel, dos mais belos que escreveu? A que não é de Luiza Neto Jorge, não "como a dela uma magnólia pronunciada", mas a que cresce mesmo, "como um livro entre as mãos"? A janela do terceiro andar: sim, é a da cela de Daniel. Lá dentro, asseguram (não nos é permitido ver), está quase tudo como ele deixou: a poesia de Luiza junto à cama (com o cancioneiro de Garcia de Resende, a Regra de São Bento, e manuais de literatura), a poesia de Santa Teresa d'Ávila e de São João da Cruz em cima da mesa (onde foi encontrado o manuscrito de "Dos Líquidos", o terceiro livro da Fundação Manuel Leão, publicado postumamente), as pedras-cristal em caixinhas na estante pequena, os papéis e os livros (uns 300) na estante grande, a roupa no armário. Há ainda - relata Frei Bernardino - um pequeno rádio, em que ele escutava a Antena 2 e a TSF, e todo o material das colagens: papéis variados, cartolinas, cordel, madeiras.Como passava os dias Daniel, fora da oração e da escrita? Resume Dom Abade: "Fazia as limpezas, as vindimas, a oficina, a engarrafar licor, como todos, além das aulas de Regra de São Bento. E começava no restauro e encadernação de livros, até foi a um mosteiro de Barcelona ver como faziam." Além disso - acontecimento em Singeverga - montou um teatro. Nove monges numa peça de Reis (5.1.99) com textos de Sophia e dele próprio. Participação especial de Dom Abade: "Pôs-nos todos a trabalhar. Escreveu, ensaiou, encenou. Era um rapaz muito exigente nas suas responsabilidades, de uma profundidade, um querer saber, uma inteligência rara. Dizia que estava no lugar certo. E nós também achávamos."Cá fora, todos também achavam. A mãe: "A gente ia lá, e ele sempre com aquela paz, com aquela felicidade." Nuno Higino: "Tinha encontrado um lugar bem situado." Fernando Mota: "Terminava onde sempre esteve."Fernando Nuno ressalva que "era uma comunidade envelhecida com padres a mais e monges a menos" e que "a princípio ele teve algum receio de perda de um certo ideal monástico de contemplação e recolhimento." Mas depois, "já se sentia feliz, confiante, e menos ansioso com a sua própria escrita." Carlos Azevedo acredita que se Daniel continuasse vivo "ia dar um novo alento ao Mosteiro, levar gente nova." Isto, porque os dois monges mais jovens são os que já conhecemos, com 26 anos, Frei Bernardino, e logo a seguir, com 50 anos, Dom Abade. A média de idades rondará os 65 anos.No fim do primeiro Inverno em Singeverga - como ainda estava a acabar letras, durante a semana dormia no Mosteiro de São Bento da Victoria, no Porto - dá-se o episódio que levou à edição dos dois primeiros livros comercializados no mercado, "Explicação das Árvores e Outros Animais" e "Homens Que São Como Lugares Mal Situados": perde uma disquete com os dois textos e assusta-se com a ideia de alguém os publicar primeiro."Perguntou-me o que havia de fazer", lembra Carlos Azevedo, a cuja família pertence a Fundação Manuel Leão, "discutimos várias editoras, tinha de ser rápido, e ninguém o conhecia. Por isso, propus-lhe fundar uma colecção de poesia." Assim foi. Reproduziram-se as colagens de "Oxálida" e "A Casa dos Ceifeiros" para oferecer no bolso da contracapa de cada volume, Daniel escolheu o corpo de letra - "muito pequeno, para os versos compridos não partirem" -, e à beira do Verão de 1998 os livros estavam cá fora. Sendo logo dois, de um estreante, numa editora desconhecida, tiveram pouco eco imediato, mas foram passando de mão em mão.E, com permissão de Dom Abade, Daniel correspondeu a alguns convites para falar do que era e escrevia. Assim, foi à Fundação Eugénio de Andrade ou à Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto - a pedido da qual escreveu um auto-retrato invulgar, no Outono antes de morrer.A morte aproximou-se na madrugada de um dia que para os católicos é o do Corpo de Deus, 3 de Junho, tinha Daniel 28 anos. Segundo o relato de Dom Abade: "Ele levantou-se à uma da manhã para ir à casa de banho. Estava uma grande chuvada, a janela estava aberta, a porta bateu, apanhou-lhe um dedo, ele caiu e bateu com a parte de trás da cabeça. Chamou um colega, que lhe limpou o sangue, e foi-se deitar. Às quatro da manhã telefonou-me para o quarto a dizer que não se sentia bem. Fomos logo para o hospital de Santo Tirso, de onde o mandaram para o São João do Porto. Fizeram-lhe uma TAC, que acusou traumatismo craniano. À cautela, internaram-no em observação. Vim-me embora tranquilo. Às sete da tarde telefonam-me a dizer que tinha entrado em coma.""Foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida", recorda o Padre Nuno, capelão do hospital, "desde que o Daniel me entrou por ali que eu não estava tranquilo, fui-o visitando durante a tarde. E quando vou, mais uma vez, vi aquele reboliço. Ele tinha acabado de entrar em coma, e estavam a descer com ele para uma nova TAC. Dei-lhe a extrema-unção a correr, corredor fora. E depois foi uma espera terrível, durante a cirurgia." Demorou seis horas, a operação, sem que os médicos conseguissem estancar a hemorragia que entretanto avançara. Segundo Celeste Dias, a médica responsável pela unidade de cuidados intensivos, a segunda TAC revelou um edema, um coágulo de sangue no cérebro. A cirurgia seria para o retirar, mas o nível de plaquetas estava tão baixo - "nunca soubemos se por um problema que o Daniel já tivesse, ou se devido ao próprio traumatismo craniano" - que se formava sempre um novo coágulo. Ainda houve segunda intervenção, o coma manteve-se, e, ao fim de seis dias, a 9 de Junho, foi decretada a morte cerebral.O que agora parece unir os que amavam Daniel é a estranha paz que se sobrepôs à primeira, violenta dor. Padre Nuno: "Senti uma angústia, mas também uma pacificação. Porque ele morreu perfeitamente cumprido." Padre João Pedro: "Passadas três semanas, fui com o Padre Nuno ao Mosteiro de Ossera, na Galiza, buscar um poema que ele fizera para um frade de quem ficara amigo, no ano anterior [ver reprodução nesta página]. Quando lhe contámos da morte do Daniel, disse: 'Tinha de ser. Estava maduro.' Via-o como um anjo. É um pouco essa imagem que guardo: não uma perda irreparável, mas uma presença, mesmo física, aquilo a que nós chamamos a comunhão dos santos." Rosália Monteiro: "A morte sempre viveu com ele, nunca esteve longe, como está de nós. Acredito que o Daniel se entristece e alegra connosco, que está aqui."Isabel: "Não o vejo como um anjo, mas como um homem com uma missão, que cumpriu."Quem leia a sua poesia, há-de parar muito, pensando que ele pressentia a morte como quem espera uma libertação. Parar em versos como: "Pensa que morrerás/ No chão/ À tua porta/ E nunca mais acabarás/ De regressar".Fernando Nuno conta que ele pedia "ajuda-me a viver", ou "faz-me durar", "como se nós, os amigos, o salvássemos, fôssemos o rosto através do qual ele via a transparência". De volta à primeira casa, sabendo que o seu dia de nascimento foi Sábado Santo, talvez se leia de forma mais clara o que, meses antes de morrer, escreveu no auto-retrato já aqui referido: "É um rosto com os olhos, os lábios, o pensamento, todo o retrato à procura do silêncio ressuscitado, como Sábado Santo esperando em seu coração, em sua garganta, em suas mãos, em cada sopro do barro, o canto novo (...). Eu já sabia que o lugar era a pedra, mas só depois fiz da pedra o meu lugar. Encontrei como entrar nela pelo seu lado aberto, descansar em sua pulsação até não ser mais ninguém. A completa presença na única presença, para ser, à sua semelhança, tudo em todos."No lugar da pedra estão os livros.(São devidos agradecimentos às 18 pessoas entrevistadas neste percurso. Mas, em particular a Nuno Higino, Manuel Mendes e Vera Vouga. A Rosa e Isabel. Por último, agradeço a José Tolentino Mendonça, que num claro dia de Junho me falou na poesia do Daniel. A citação de Sophia, no início é de "Legenda Para Uma Casa Habitada", álbum de homenagem a Daniel Faria, editado pela Paróquia de Marco de Canaveses.)