Um prémio e uma palmeira para Eugénio de Andrade
"Eu até tinha lido uma notícia que me dava como favorito para o Prémio Camões, mas esqueci-me completamente que a decisão era hoje [ontem] e organizei o meu dia sem me lembrar disso", explica Eugénio de Andrade. Pode parecer um tanto inacreditável que alguém se esqueça da data em que corre o risco de ganhar 12 mil contos, mas tudo indica que foi mesmo o que aconteceu. Doutra forma, não parece crível que Eugénio tivesse escolhido justamente a tarde de ontem para as provas finais de um conjunto de calça e casaco, uma operação minuciosa e demorada, daquelas em que se acaba com dezenas de alfinetes espetados por todo o lado. Enquanto os dois telefones - o particular e o da Fundação Eugénio de Andrade - tocavam ininterruptamente e as televisões começavam a não lhe largar a porta -, o poeta discutia calmamente com a sua alfaiate o excessivo comprimento das calças e lembrava-lhe que gostava delas um pouco sobre o largas. Eugénio estava menos perturbado com o prémio do que com a agitação que este trouxe às suas pacatas rotinas, que incluem um pequeno passeio e um breve descanso depois do almoço. Ainda pôs o pé na rua, mas apareceu-lhe uma equipa de televisão. Estavam a pedir-lhe um depoimento, quando, conta, "apareceu um velhote a queixar-se: 'Eu já aqui moro há 60 anos e você só cá esta há seis, mas aparece na televisão'". O poeta não deixou passar a deixa: "Ó homem, aproveite a oportunidade, que eu não lhes vou dar entrevista nenhuma". Os telefones e a campainha da porta começaram ontem a tocar em casa de Eugénio de Andrade logo ao final da manhã. E não pararam, literalmente, durante toda a tarde. Quem fazia a triagem era a empregada, que desabafou ao PÚBLICO: "Não queira saber o que isto tem sido. Não consigo adiantar nada do que tenho para fazer. Ele diz que não recebe, que não recebe, e eu até tenho medo de mandar embora alguém importante". Mas havia uma visita que Eugénio aguardava ontem com impaciência e que foi, provavelmente, a que recebeu com mais sincera alegria: um botânico que vinha devolver-lhe uma palmeira. "Era uma árvore que eu tinha desde que vim para aqui e que começou a mirrar, de modo que, há uns anos, levaram-na para os jardins do Palácio de Cristal, para ver se a recuperavam.Dado como favorito para receber este ano o Prémio Camões - o seu nome já teria mesmo sido falado na edição anterior -, o poeta não se surpreendeu com a escolha, mas gostou de saber que a decisão do júri fora unânime. "Há todas as razões para estar satisfeito", admite Eugénio: "É um prémio prestigiado, tal como o seu júri, que inclui alguns camonistas ilustres, e, sobretudo, tem o nome de Camões, que é, como se sabe, uma das grandes fascinações da minha existência". E, num pouco habitual rasgo de modéstia, aliás manifestamente injustificada, acrescentou: "Só me inquieta um pouco não saber se estou à altura de outros escritores que já o receberam". Quanto ao dinheiro, garante que não tem "a mínima ideia" do que poderá vir a fazer com ele. "Não tenho carta de condução, não posso comprar um carro novo". Só lamenta não o ter recebido "aos 50 anos, quando uma pessoa ainda tem prazer em viajar, e em viver". Aproveita, por isso, para aconselhar os responsáveis do Prémio Camões a que o comecem a atribuir a escritores mais novos. "O problema destes prémios é que são sempre dados um pedaço tarde; é terrível, porque dá a sensação de que só se lembram de nós quando já estamos um bocadinho a caminhar para o outro lado... uma pessoa até fica aflita.". Este prémio chega a Eugénio já depois de este ter recebido, ano passado, dois dos mais importantes prémios literários ibéricos (ver cronologia), e quando se prepara para ver sair, em Espanha, um número especial de 400 páginas da revista "Espacio/Espaço Escrito", organizado por Ángel Carlos Pámpano, que lhe será inteiramente dedicado. Também uma das mais prestigiadas editoras dos Estados Unidos, a New Directions, publicará em 2002 uma extensa antologia da poesia Eugénio, a juntar às largas dezenas de traduções que este já tem espalhadas por inúmeros países e línguas. Com 78 anos, e tendo já recebido todas as homenagens a que podia aspirar, Eugénio nem por isso deixa de trabalhar. Em Outubro próximo, sairá simultaneamente em Portugal e em Espanha - numa tradução de José Ángel Cilleruelo - um novo livro de poemas seus, intitulado "Os Sulcos da Sede", que o poeta quis abrir com uma epígrafe de Villon, que ele próprio traduziu assim: "Morro perto da fonte à míngua de água".