O túnel que o Porto exigiu
Há exactamente 114 anos, no dia 8 de Julho de 1887, a Câmara do Porto aprovou o projecto de construção de uma estação de caminho-de-ferro no coração da cidade, que deveria ser edificada no lugar onde então se erguia o convento beneditino da Avé-Maria. Para se levar o comboio de Campanhã até ao centro do Porto - uma extensão de pouco mais de dois quilómetros e meio -, rasgou-se, das Fontainhas a S. Bento, um extenso túnel através do granito. Houve desabamentos de terras, morreram operários, as obras estiveram suspensas por um longo período, mas a obra acabou mesmo por se fazer, em boa medida graças à pressão constante da sociedade civil portuense.O plano, assinado pelo engenheiro Hipólito Baére, previa ainda a construção de um segundo ramal, que garantiria a ligação à Alfândega e que se destinava exclusivamente ao transporte de mercadorias. Também esta linha obrigou à abertura de vários túneis na escarpa do Douro. Aprovado definitivamente o projecto por despacho do Governo, datado de 18 de Janeiro de 1888, as obras, a cargo da Empresa dos Caminhos-de-Ferro do Minho e Douro, arrancaram a bom ritmo. No final desse ano já estava operacional o ramal da Alfândega e, com o início da abertura de um túnel entre as Fontainhas e S. Bento, parecia que o comboio não tardaria a chegar ao centro da cidade.Afinal, tardou. Só oito anos mais tarde, no dia 7 de Novembro de 1896, é que a locomotiva "Miragaia", puxando várias carruagens de primeira classe e uma carruagem-salão, desembocou do recém-concluído túnel da Avé-Maria (depois chamado de D. Carlos I), para ir terminar a sua marcha num improvisado abarracamento de madeira, que faria as vezes de estação até à construção do edifício actual, projectado por Marques da Silva. Como as fotografias da época documentam, esta chegada do primeiro comboio a S. Bento foi saudada por uma verdadeira multidão e teve direito a bandas militares. À entrada do túnel, nas Fontainhas, lançaram-se foguetes, e ao longo da Rua da Madeira, segundo descreve a imprensa da época, as senhoras vinham às janelas agitar lenços brancos.Não era para menos. A conclusão do túnel tornara-se um verdadeiro ponto de honra para a cidade, cujas personalidades e instituições - designadamente as associações comercial e industrial, o Ateneu Comercial e o Centro Comercial do Porto, entre outras - não cessaram de fazer chegar a Lisboa requerimentos e petições nesse sentido. Intervindo na cerimónia oficial que se seguiu à chegada do comboio, o presidente do Centro Comercial do Porto, Ezequiel Vieira de Castro, elogiou justamente o papel da "opinião pública da cidade", que pressionou o Governo a terminar uma obra que esteve parada durante anos. "Os trabalhos iniciaram-se, chegou-se a um grande adiantamento, mas estacionaram por força das circunstâncias ou fatalidade das coisas", recordou Vieira de Castro, num resumo que seria aplicável a muitos outros empreendimentos da cidade, quer anteriores, quer posteriores.Hoje pode parecer menos evidente a importância que tinha para a cidade a construção deste breve troço ferroviário. Mas, na época, Campanhã era um arrabalde do Porto, e os viajantes que ali se apeavam viam-se obrigados a recorrer às diligências para fazer o percurso até ao centro da cidade. Só tinham dois caminhos à escolha, e eram ambos maus: a estrada marginal do Douro ou a íngreme Rua do Freixo. Era também por estas vias que os comerciantes e industriais se viam obrigados a fazer transportar as suas mercadorias. Não admira, portanto, que a chegada deste primeiro comboio se tenha transformado numa espécie de arraial popular.O instante era tão significativo que atraiu a atenção dos dois únicos cineastas portugueses da época, ambos do Porto: o célebre Aurélio da Paz dos Reis, e o menos conhecido Pinto Moreira, de quem não foi até hoje encontrado nenhum filme. No próprio ano em que nascia o cinema nacional, estes dois pioneiros da sétima arte encontraram-se para filmar o mesmo acontecimento.Num opúsculo dedicado a estes realizadores, A. Videira Santos evoca o episódio: "O trajecto foi percorrido em sete minutos, surgindo o comboio à boca do túnel à velocidade de 38 km/hora. A fixar no celulóide a chegada e o desembarque das pessoas que nele viajavam, estavam, lado a lado, Pinto Moreira e Paz dos Reis, cada um com a sua máquina, a dar à respectiva manivela!". Só é pena que nenhum dos filmes tenha chegado até nós. Mas, aparentemente, Pinto Moreira terá chegado a exibir o seu no Teatro do Príncipe Real, hoje de Sá da Bandeira.O primeiro a lançar publicamente a ideia de se construir uma estação em S. Bento terá sido José Maria Ferreira, um esquecido vereador da Câmara do Porto, que tenazmente defendeu este "melhoramento", como então se dizia, quer na sua qualidade de autarca, impulsionando a aprovação do projecto de Baére, quer em sucessivas campanhas na imprensa. A lápide descerrada aquando da inauguração do túnel presta-lhe a devida homenagem, citando-o como "iniciador" do projecto. O seu nome figura a par de três "promotores do progresso nacional": Emídio Navarro, o ministro que aprovou o projecto em 1888, o seu sucessor, Carlos Lobo d'Ávila, que ordenou que os trabalhos fossem retomados (morreu sem os ver concluídos), e o governador civil do Porto, Campos Henriques, que assumira a tutela das Obras Públicas após a morte de Lobo d'Ávila e que se encontrava ainda em funções quando o comboio chegou, finalmente, a S. Bento. Desde que a autarquia aprovara o projecto, tinham-se passado oito anos. Iam ser precisos mais 19 para concluir a nova Estação de S. Bento. A primeira pedra foi lançada por D. Carlos em Outubro de 1900, quando ainda estava de pé o antigo convento mandado erguer por D. Manuel I, em 1518. A sua demolição só se iniciou em 1901, e nem todos a aprovaram. O conde de Samodães, por exemplo, não se coibiu de profetizar: "O Porto perde um bom edifício e fica com uma má estação". Mas o projecto, ainda que lentamente, acabou mesmo por avançar. Os famosos azulejos de Jorge Colaço foram assentes em 1915 e o edifício foi inaugurado no dia 5 de Outubro de 1916.Por contraste com estes prazos, a construção da Ponte de Maria Pia, justamente considerada um prodígio de engenharia, foi surpreendentemente rápida. A empreitada iniciou-se em Maio de 1876 e, decorrido ano e meio, no dia 4 de Novembro de 1877, chegava o primeiro comboio a Campanhã. Mas se a obra de Eiffel foi realizada com celeridade, há que ter em conta que o caminho-de-ferro já chegara à margem sul do Douro em 1864. Quer os túneis do Porto, quer o que atravessa, do lado de Gaia, os contrafortes da serra do Pilar, foram obras complexas, sobretudo se tivermos em conta os meios técnicos então disponíveis. Mas adquirem uma dimensão mais modesta se pensarmos no esforço que representou a construção das linhas do Minho e do Douro, cujos trabalhos arrancaram ainda antes de existir a Ponte de Maria Pia. Bastará dizer que a Linha do Douro, de Ermesinde a Barca de Alva, exigiu a abertura de 23 túneis.