Espólio dos meninos da roda no Museu de S. Roque
Retratar uma época a partir dos documentos e objectos que acompanhavam as crianças que eram confiadas aos cuidados da Santa Casa da Misericórdia, nos séculos XVIII e XIX, é o objectivo da exposição patente no Museu de S. Roque, em Lisboa. "Os Expostos da Roda" reúne 57 conjuntos - compostos por bilhetes, fotografias, medalhas de santos ou fitas votivas - dos cerca de 70 mil que a Misericórdia de Lisboa tem em depósito no seu arquivo histórico.Embora o mais antigo documento da exposição date de 1790, há registos da existência de uma "roda" - nome que se dava ao sistema de acolhimento a crianças abandonadas existente em vários locais do país - em Lisboa desde 1759, no Hospital Real de Todos os Santos, gerido pela Misericórdia. "Antes da criação da roda, os menores eram abandonados em praças, jardins e outros locais públicos. As hipóteses dos pais virem a recuperar os seus filhos era até então nula. O espólio que aqui temos testemunha a existência dessa hipótese a partir da criação da Casa da Roda", explicou ao PÚBLICO António Meira, do Museu de S. Roque. O desejo de recuperação dos menores está presente nos conjuntos que a Misericórdia mandou restaurar propositadamente para esta exposição, embora o número de crianças reclamadas pelos familiares fosse muito reduzido: "Numa época de grande pobreza, em que as famílias, muito numerosas, não podiam garantir a sobrevivência das crianças, o abandono era frequente. Só a Santa Casa de Lisboa recebia 2000 crianças por ano, muitas das quais nunca eram procuradas pela família", ou morriam antes de atingir os sete ou oito anos (a taxa de mortalidade era muito elevada, sobretudo em recém-nascidos), a idade que marcava o fim da chamada "criação".Longe de terem qualquer valor artístico, os objectos apresentados nesta exposição testemunham laços de afectividade. Integrando a série documental "Sinais de Expostos", estes artefactos são reflexos de uma sociedade em que crenças religiosas e fortes superstições andavam lado a lado. Talvez por isso, os bilhetes em que se apresenta a criança, registando o seu nome, a igreja em que foi baptizada ou o santo que a protege, sejam muitas vezes acompanhados por dados, figas ou bilhetes de lotaria. "Estes documentos dão importantes indícios sobre a origem da criança. A forma como estão escritos, e até a própria letra, podem ser indicadores de determinado estrato social. Os objectos que os acompanham são a única ligação que o exposto [a criança deixada na roda] mantém com a sua família."Em muitos dos casos o anonimato era secundário para quem colocava a criança aos cuidados da Santa Casa. O facto de se juntar ao "enxoval" que a acompanhava uma fotografia do pai é disso exemplo. No entanto, noutros, a identidade dos familiares era cuidadosamente escondida. "Muitas vezes, usavam códigos, juntavam-lhe pequenos adornos em ouro", contas de cerâmica ou simplesmente recortavam os documentos de forma a manterem em seu poder uma parte que lhes permitisse, em caso de resgate da criança, comprovar aos serviços da Misericórdia que eram seus familiares. "Nem só as famílias pobres entregavam os filhos. As mais abastadas, que não queriam arruinar a sua reputação criando bastardos, também as colocavam na roda."Quando chegavam à Santa Casa, as crianças eram confiadas aos cuidados de uma das amas da Casa da Roda, a parcela do complexo de S. Roque que era destinada aos menores abandonados. Era feito um primeiro registo e colocado ao pescoço da criança uma medalha em chumbo com um número sequencial que a identificava e com as armas da Misericórdia. Alguns desses exemplares - que se destinavam também a fiscalizar o trabalho das amas contratadas pela instituição - assim como o alicate que os cunhava, estão patentes na exposição, onde se podem ainda encontrar dois desenhos e duas pinturas do século XIX.