"Pasión Latina" no Coliseu de Lisboa
Chamam-lhe rainha da salsa e Célia Cruz, a cubana que deverá ter quase 80 anos (nunca revelou a verdadeira data de nascimento), que muda constantemente de peruca - quase sempre a condizer com a roupa que veste - e que, onde quer que vá, grita a palavra de ordem "Azucar!", parece sentir-se bem nesse trono.E os espanhóis, ou melhor, os que foram à discoteca Riviera, em Madrid, na quinta-feira à noite, prestaram-lhe vassalagem num concerto lotado onde predominou a improvisação de temas de maior sucesso entre salsa, rumba, bolero, guaracha, son ou jazz latino. Um espectáculo que é uma "recordação do passado", dissera Paquito D'Rivera dois dias antes numa conferência de imprensa, em Madrid, referindo-se ao repertório interpretado - como "Mi Tarara", "Andalucia", "Cicuta" ou "Guantanamera". "Pasión Cubana", espectáculo que em Lisboa (Coliseu) tem o nome de "Pasión Latina", reúne músicos cubanos de gerações diferentes. Nenhum deles vive em Cuba: Célia Cruz mudou-se, nos anos 60, para os Estados Unidos da América (EUA), tal como Paquito D'Rivera, uma das grandes figuras do jazz latino, e como Albita, a quem já chamaram de k.d. Lang cubana pela sua voz andrógina. Lucrécia, que canta sobretudo boleros e tem tocado com D'Rivera, vive em Barcelona. A este grupo de cubanos junta-se hoje Vitorino - o português que gravou "La Habana 99" com os Septeto Habanero - para cantar o "Fado da Prostituta". Em Espanha, a convidada foi a bailarina de flamengo Sara Baras, que partilhou uma coreografia improvisada num duo com Paquito.Apesar da constelação de estrelas cubanas, Célia Cruz - com dezenas de discos editados, um Grammy e participações com músicos como David Byrne - é a superestrela do grupo. Pelo menos para os espanhóis, que a conhecem bem melhor do que os portugueses (hoje será a terceira vez que Célia Cruz actua em Portugal). Por isso, quando, na quinta-feira à noite, já mais de metade do espectáculo madrileno tinha decorrido - cada um teve direito a brilhar num par de músicas -, Paquito, dentro do seu fato escuro e chapéu tipicamente cubano, pediu silêncio ao público dançante, dizendo: "Chegou um momento muito importante. O coração de Cuba é negro e maravilhoso e chama-se Célia Cruz."Então, Célia Cruz, com seu enorme vestido cor-de-laranja, peruca e baton nos lábios a condizer, uma energia invulgar em alguém da sua idade, num estilo ao qual não será alheia a influência americana, apareceu numa plateia de onde saiam muitas mãos no ar e assobios, levando os que fizeram de escadas cadeiras a levantarem-se de rompante. E ouviu-se um "Azucar!" antes da cubana começar a cantar "Yerbero". "Que aplauso tão bonito", agradeceu, elogiando a plateia no final da música. Falou a quem a aplaudia: "Sabem o que trago para vocês?". E seguiu-se "Carnaval". Foi aqui que uma espectadora furou a segurança e subiu ao palco. Não houve turbilhão, Célia Cruz deixou-a gozar uns minutos aquele momento, um homem levou-a em seguida. Chamou Albita e cantaram em conjunto o bolero "Quando se quier deveras". E, depois de no início o público ter respondido ao microfone que Albita direccionava para a "plateia", Célia Cruz puxou ainda mais pela "claque". Cantou "Bemba" e pediu para ouvir a palavra "coloré". Ouviu-a em coro e disse: "Como? Não entendo". E o público repetiu-a e repetiu-a, ao mesmo tempo que a orquestra Bacardi acelerava e abrandava o ritmo, alternadamente. Célia Cruz ainda se aproximou de um espectador que estava na primeira fila - talvez o mesmo a quem Albita, momentos antes, se dirigiu e ofereceu o microfone. Bateram-se palmas a acompanhar os ritmos, ela pergunta-lhes: "Qual é o meu nome?". Dá-lhes voz e ouve-se um "Célia Cruz!" que o público canta em contraponto.A rainha da salsa saiu e o público gritou-lhe que voltasse. Fez-lhes a vontade. Mas convidou Albita, Lucrecia (com quem cantou pela primeira vez) e Paquito para um improvisadíssimo "Guantanamera", com muitos abraços entre todos e muita dança à mistura. Pediram novamente. E, novamente, Célia Cruz cantou um "Oyé cómo va", do falecido Tito Puente (com quem gravou oito álbuns e veio a Portugal para um concerto em 1996).A despedida final coube a Paquito: "Cuba livre!", gritou. Fora da discoteca, cuja música de fundo, como não podia deixar de ser, era cubana, distribuiam-se panfletos contra a marca de rum que promoveu o espectáculo: pedia-se o boicote a uma "impulsionadora do bloqueio americano a Cuba".