Mutações genéticas raras obrigam a retirar estômago para prevenir o cancro
Teresa Firmino
Cientistas do Porto fizeram os exames que levaram à confirmação da necessidade de gastrectomia total para prevenir a doença em portadores de defeitos genéticos raros A história de cinco pessoas que retiraram todo o estômago, para não terem cancro gástrico, aparece contada num dos últimos números da revista médica "The New England Journal of Medicine". À excepção de um caso, todas as pessoas seguiram a recomendação radical de um grupo internacional de médicos, de 1999, por serem portadoras de mutações genéticas - hereditárias - que as torna extremamente susceptíveis a uma forma de cancro do estômago. Isto apesar de os exames médicos não terem revelado quaisquer sinais da doença. Mas o que acaba de ser confirmado, e vem contado na revista, é que aquela decisão não poderia ter sido mais acertada. Exames minuciosos aos estômagos depois da remoção, feitos por investigadores da Universidade do Porto, revelaram que, afinal, até já existiam pequenos focos de células malignas nas cinco pessoas. O artigo é assinado à cabeça por David Huntsman, da Universidade da Columbia Britânica, em Vancouver, Canadá.Os doentes apresentam mutações num gene que comanda o fabrico de uma proteína - a caderina-E, que se localiza na membrana celular e permite a ligação entre as células do estômago. É, assim, uma molécula dita de adesão. Quando existem defeitos nesse gene, essa proteína de adesão não é produzida ou é anormal. Isso conduz, em última análise, ao aparecimento de uma forma de carcinoma - o cancro de tipo difuso, em que as células cancerosas aparecem desagregadas umas das outras.A esmagadora maioria dos casos de cancro gástrico de tipo difuso são esporádicos. Ou seja, acontecem por acaso e por isso não são hereditários. Mas em 1998 fez-se uma importante descoberta: além de se ter identificado a existência de cancro gástrico de tipo difuso que é hereditário, percebeu-se que o gene da caderina-E é o responsável por estes casos. Detectaram-se também várias mutações nesse gene que conduzem à doença (ver cronologia). Já se nasce com essas mutações e, por isso, elas estão presentes em todas as células do corpo e não apenas nas cancerosas, como acontece nos cancros esporádicos. O risco das pessoas que têm estas formas diferentes do gene virem a sofrer de cancro é 2000 vezes mais elevado do que na população em geral.Em 1999, pouco mais de um ano depois daquela descoberta - a primeira que associa um tipo de cancro do estômago a mutações genéticas herdadas dos pais -, um grupo internacional de cientistas, que inclui investigadores do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), emitiu uma recomendação. À primeira vista, muito drástica. Aos portadores dessas mutações hereditárias do gene da caderina-E, e que ainda não apresentam sintomas da doença, deve ser oferecida a possibilidade retiraram todo estômago para prevenir o aparecimento de uma doença grave e letal. A ablação completa significa retirá-lo desde o cárdia, o orifício de comunicação entre o esófago e o estômago, até ao duodeno, o início do intestino delgado, para que não fique nenhum tecido do tipo gástrico onde o cancro pode sempre aparecer. A contrapartida de algo tão extremo é continuar-se vivo.Mas por que razão o grupo internacional aconselhou tal coisa? Não se poderia, ao invés, fazer uma vigilância médica apertada, com endoscopias e biópsias regulares? É certo que sim, e esse é o caminho para quem não quiser seguir a via da gastrectomia. Mas um dos autores do artigo, Fátima Carneiro, do Ipatimup, lembra algumas manhas do cancro gástrico de tipo difuso. "É muito dissimulado", diz a investigadora, pois não dá sinais senão numa fase muito avançada.As células malignas infiltram-se em profundidade na parede do estômago e não causam lesões superficiais na mucosa, que parece normal. Por isso, o endoscopista não as vê e colhe pedacinhos do estômago, para as biópsias, ao calhas. Talvez ao lado. Só quando a infiltração da parede já é muito grande, tornando a parede do estômago rígida, é que o endoscopista se apercebe das lesões. "Não há nenhum método de rastreio - nem ecográfico, nem radiológico nem de vigilância - que permita encontrar estas células isoladas que crescem na parede do estômago e migram, sem se verem", diz Raquel Seruca, também do Ipatimup e da equipa que assina o trabalho.De facto, na história recente das cinco pessoas estudadas houve casos em que se fizeram colheitas de biópsias de seis em seis meses, consideradas sem cancro, e numa consulta seguinte o doente apareceu com cancro. A isto junta-se o facto deste cancro surgir em múltiplos locais, independentes uns dos outros.