O "spleen" de Eça
O NOME de Eça de Queirós está envolvido, nos últimos meses, numa querela entre o "English Heritage" - uma espécie de instituto do património, na Inglaterra - e as autoridades portuguesas. Uma placa comemorativa assinala, há quase quatro décadas, a passagem de Eça por Bristol, cidade onde ele foi cônsul entre 1878 e 1888. Mas o escritor esteve igualmente colocado em Newcastle (1874 a 1878) e viveu longas temporadas na capital. Apoiada por documentação oficial e cartas de recomendação, enviadas de Lisboa, a embaixada de Portugal no Reino Unido sugeriu a colocação de mais duas placas, em Newcastle e Londres. A cidade do nordeste da Inglaterra atendeu prontamente ao pedido e em breve será descerrada oficialmente, no número 1 de Eldon Square - morada da antiga representação consular portuguesa -, uma placa honrando o "diplomata e romancista de estatura europeia, que viveu aqui (...) alguns dos anos mais produtivos da sua carreira de escritor".Mas em Londres a história foi outra. O "English Heritage", que supervisiona a colocação das famosas "Blue Plaques" nos edifícios da capital, recusou a atribuição de uma placa comemorativa da estadia de Eça de Queirós no número 23 de Ladbroke Gardens, no coração do bairro de Notting Hill, em Londres. "Só podemos erigir um número reduzido de placas por ano", justificou Geoffrey Noble, da "English Heritage". "Além disso, já homenageámos outras figuras como Ugo Foscolo, Italo Svevo, Emile Zola e Stéphane Mallarmé".A desculpa irritou, naturalmente, os representantes portugueses (curiosamente, as secções de cartas dos leitores, nos principais jornais britânicos, tem incluído recentemente diversos protestos pelo facto da "English Heritage" atribuir, sem pestanejar, novas "Blue Plaques" em honra de déspotas e tiranos - como Haile Selassie ou Kwame Nkrumah, que residiram na capital - ou de grandes figuras, como Béla Bartók, cuja ligação a Londres se resume ao facto de aí terem pernoitado, muito de passagem). A obstinação da "English Heritage" desencadeou a reacção de académicos respeitados, como T.F. Earle, da Universidade de Oxford, Brian Powell (Hull), David Brookshaw (Bristol) ou Alan Freeland (Southampton).Todos eles estranharam a atitude oficial: "Eça é uma das grandes figuras da literatura universal do seu tempo e da época moderna no seu todo", diz Powell. "Se Eça fosse francês, ele seria tão conhecido e estudado quanto Flaubert", acrescenta o jornalista literário Jonathan Keates. "Não se trata apenas do mais importante romancista português do século XIX" - diz por sua vez o professor Brookshaw - "mas de um grande nome da literatura mundial, uma das figuras mais versáteis do Realismo europeu que nós deveríamos sentir imenso orgulho em celebrar".Estes autores sublinham ainda a ligação estreitíssima de Eça de Queirós à Inglaterra. A maior parte dos romances queirosianos está traduzida e editada no país, tal como acontece com todas as principais línguas europeias - ou mundiais, como o chinês. Uma das suas obras foi dramatizada pela BBC Radio 4, há alguns anos. Eça continua a despertar o interesse de vários estudos académicos, tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos, resto da Europa e América Latina. "Mas nós ainda não perdemos a esperança", explicou ao PÚBLICO fonte da embaixada portuguesa em Londres. "Pode ser que a 'English Heritage' reconsidere a sua posição. ... um pouco como a história da azeitona teimosa: de tão picada ela acabará, um dia, por ficar presa num dos palitos".A presença de Eça de Queirós na Inglaterra coincide com os anos mais criativos e de maior actividade da sua carreira de escritor. O "período inglês", entre 1874 e 1888, inclui as suas obras principais, como "O Crime do Padre Amaro", "O Primo Basílio" e "Os Maias". Na Inglaterra, ainda, Eça produziu a maior parte das suas peças jornalísticas - por sinal, muito pouco rigorosas: estão cheias de exageros, distorções e caricaturas -, recolhidas em livros como "Cartas de Inglaterra" e "Crónicas de Londres".Quando foi destacado para o consulado de Newcastle, nos finais de 1874, Eça ficou encantado com o regresso à Europa. Comparada com Havana, seu posto anterior, Newcastle representava o retorno à civilização do Velho Mundo. Eça passava a estar muito mais perto do seu país e de grandes centros como Londres ou Paris, a sua cidade preferida.Em breve, porém, a realidade do dia-a-dia na capital do carvão e do ferro, no nordeste da Inglaterra, esfriou-lhe o ânimo. O optimismo cedeu face ao frio, humidade e bruma desta Newcastle "sombria, de tijolo negro, meio sepultada na lama". Este grande centro industrial atravessava então um período de recessão, com conflitos laborais constantes entre mineiros - que constituíam três quartos da população - e patrões. Eça dedicou-lhes muitas páginas dos seus relatórios enviados para Lisboa.Apesar do seu predecessor, o barão de Wildik, o ter apresentado à sociedade local, Eça de Queirós sentia-se tremendamente só. As visitas de Portugal eram raríssimas e o seu círculo de amigos resumia-se a uma pessoa, Gustav Wachmeister, cônsul da Suécia. "Sim, meu querido Ramalho", escreveu ele numa carta, "estou lutando, desde que deixei a nossa linda Lisboa, com esse monstro impalpável - o "spleen" (má disposição, irritação). Aqui tudo tem "spleen": o céu, as almas, as paredes, o lume, os chapéus das mulheres, os discursos dos oradores e os entusiasmos da paixão".As experiências com o sexo oposto deixaram-no igualmente desiludido (nas cartas a amigos, Eça refere pelo menos duas amantes inglesas - uma "desavergonhada", a outra "devota em excesso"). "De modo que a minha vida é comer e fazer prosa", escreveu ele. "Encontro-me só, secado (...) e tendo de novo de jantar só, em 'tête-à-tête' com um pequeno 'square' de relva verde que se vê da janela, onde crianças se exercitam no pugilismo e no "cricket". A crise era tão profunda que terá sido no final da sua estadia em Newcastle, em 1877 ou 1878, que ele decidiu casar-se: "Não tenho pelo casamento aquele horror de outrora", explicou ele. O casamento teria efectivamente lugar oito anos mais tarde, em Fevereiro de 1886, com a irmã do seu grande amigo e companheiro, conde de Resende. Eça de Queirós já estava a viver, então, em Bristol, na costa ocidental da Inglaterra. A nomeação ocorreu em Julho de 1878, mas ele só assumiu a direcção do consulado nove meses mais tarde, em Abril de 1879.Tal como em Newcastle, a rotina do trabalho consular numa cidade portuária deixava-lhe bastante tempo livre, que ele pôde dedicar inteiramente à escrita. Bristol tinha, ainda, a vantagem da proximidade da capital, que Eça visitava regularmente. Os 14 anos passados na Inglaterra chegaram, porém, ao fim, no Verão de 1888. Há muito que Eça de Queirós tinha os olhos voltados para Paris: "Ora Paris, como sabes também, tem sido o meu sonho", escreveu ele numa carta a Oliveira Martins, em Agosto daquele ano. "O pouco que eu valho poderia ser de alguma utilidade para o país estando em Paris: em Bristol é que lhe não são de utilidade nenhuma - porque carimbar manifestos de carvão tanto o pode fazer um "garçon de bureau" como eu. Em Paris as minhas imediatas relações de literatura e de imprensa não seriam talvez de pequena valia". Fizeram-lhe a vontade. Poucos dias depois, por decreto de 28 de Agosto de 1888, Eça de Queirós seria transferido de Bristol para o consulado de Portugal em Paris.