Eça entre "A Cidade e as Serras"

Cruzar os 100 anos do centenário da morte de Eça de Queirós e os 100 anos da 1ª edição de "A Cidade e as Serras" é o objectivo do colóquio "Diálogos com Eça no Novo Milénio", que decorrerá hoje, durante todo o dia, no Palácio Fronteira, a S. Domingos de Benfica, em Lisboa.Vindo a lume, como obra semipóstuma, em 1901, na Chardron, do Porto, desde cedo que "A Cidade e as Serras" ficou envolto numa penumbra. Cinco anos antes da morte - a 16 de Agosto de 1900 -, José Maria, com a saúde pelas ruas da amargura, ainda corrigia provas. À data do seu desaparecimento, 65 por cento do texto tinha passado pelo crivo do romancista. A partir da página 241, aparece Ramalho Ortigão. Não altera o enredo - que tinha tido a sua origem no conto "A Civilização" -, mas o mesmo não se pode dizer quer quanto ao estilo, quer quanto a alguns pormenores. Frank Sousa, o responsável pela Edição Crítica, já apanhou 1300 correcções da pena da "Ramalhal figura"...Desde então que a obra foi lida à luz das mais diversas ópticas (algumas delas bem vesgas). A crítica salazarenta e nacionalista do Estado Novo, aquando do centenário do nascimento do escritor em 1945, quer à viva força demonstrar que, no final da vida, Eça estava deliciosamente convertido aos ideais da ruralidade como essência do ser português... E, claro, do dr. Oliveira Salazar.Ao contrário: o romance, na altura em que é escrito, revela uma aguda visão do síndroma do fim de um outro milénio e de modelo(s) civilizacionais, uma modernidade que, a críticos tão lúcidos como Jacinto do Prado Coelho, passaram quase completamente despercebidos.Justiça seja feita a Alexandre Pinheiro Torres - tantas vezes injustamente apodado de neo-realista primário - quando dá a entender que Eça está preocupado em mostrar "como Jacinto e Zé Fernandes são simultaneamente falsos intérpretes da Cidade e do Campo, logo falsos intérpretes das soluções que salvariam os espaços urbano e rural dos males de que Zé Fernandes se faz principal diagnosticador".E hoje, como ler "As Cidades e as Serras"? A grande animadora-organizadora do colóquio (ver caixa), a ensaísta e professora na Universidade Aberta, vencedora do Prémio de Ensaio Ernesto Guerra da Cal (instituído pela Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da Morte de Eça de Queirós, com o trabalho "Ironia e Socratismo em 'A Cidade e as Serras'" - ver PÚBLICO de 22/3/01), Ana Nascimento Piedade, defende que estamos perante uma "obra que ultrapassa o equacionar estrito da 'velha' oposição cidade/campo e que, sob o aparente esquematismo da associação civilização = ilusão 'versus' natureza = felicidade, oculta um texto problemático, recheado de indícios e símbolos que, usando a ironia de forma multifacetada, requer decifração".Porém, esclarece Ana Nascimento Piedade, esta decifração está intimamente relacionada com "o inebriante prazer que a sua escrita proporciona", "intenso sentido de humor e a constante ironia, umas vezes subtilíssimos pintando atmosferas, outras, de contornos mais explícitos, que a cada passo percorrem o livro".Um dos mais conhecidos - mas até parece que ninguém deu por ele - é a descrição do encontro-paixão entre Zé Fernandes e Madame Colombe, uma prostituta-bissexual. Eça é brutal quando põe na boca do narrador, Zé Fernandes: "Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com amor, com todos os amores que estão no amor, o amor divino, o amor humano, o amor bestial, como Santo António amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um bode ama uma cabra". Não dará vontade de voltar a reler algumas passagens de "O Crime do Padre Amaro" para se compreender a sua lucidez? Afinal de contas, onde começa e acaba "o primeiro" e "o último" Eça?

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