No princípio eram os Boavista Footballers...
... e depois foi a cisão entre ingleses e portugueses, e depois, muitos anos depois, há dias, foi o primeiro título de campeão português de futebol. Breve história de um clube em seis capítulos e uma mão cheia de retratos de incondicionais. O momento é do preto e branco, aos quadradinhos.
Harry e Dick Lowe eram britânicos deslocados com residência permanente na Rua Fonte Arcada. Perto de casa existia o terreno agrícola do senhor Baltar e foi lá que os dois jovens cultivaram o gosto pelo futebol, muito por culpa de um presente vindo expressamente de Inglaterra: uma bola de couro. Amândio Barros, compilador da primeira história do Boavista, assegura que foi mais ou menos assim que nasceu, nos primeiros meses de 1903, um dos clubes mais representativos da cidade do Porto.Entretanto, os Lowe juntaram alguns amigos, uniram forças com os empregados da fábrica de William Graham - na Invicta ainda existe a rua com o nome da empresa -, alugaram um terreno no Bessa, propriedade do solicitador António da Costa Mascarenhas, e não tardou até estar constituído o The Boavista Footballers, cuja direcção era composta por um punhado de ingleses e pelos portugueses Pedro Brito e Maximiano Pereira. Num contexto adverso - a economia nacional estava em crise, multiplicavam-se acusações de incompetência ao regime monárquico e, simultaneamente, as manifestações de adesão ao republicanismo -, o objectivo do grupo não ia além da rivalidade com o Oporto Cricket e da tentativa de roubar alguma exclusividade ao vizinho FC Porto, que, diz-se, nasceu a 28 de Setembro de 1893.Em 1907, o International Board decidiu que o "off-side" não poderia ser assinalado a um jogador na sua própria metade de terreno e, em contrapartida, rejeitou a proposta do País de Gales para que um "goal" pudesse ser apontado directamente através de um "corner". Quase sem querer, nesse mesmo ano, o Boavista dava o primeiro passo para a emancipação, naquela que fica para a história como a primeira Assembleia Geral, por força do diferendo que opunha portugueses e ingleses em torno do dia do "match": os ingleses defendiam uma pausa desportiva ao domingo, respeitando os preceitos da confissão anglicana; os portugueses optavam pelo desporto ao sétimo dia, o único em que todos estavam realmente livres. Estava consumada a cisão: a instituição do calção branco e camisa preta e a inauguração oficial do primeiro campo pelado do Bessa (11 de Abril de 1910) são os primeiros indicadores da transformação do The Boavista Footballers em Boavista Futebol Clube.Com o tempo, as bolas deixaram de ser importadas, os árbitros já não eram tratados por "referee", a falta ganhou espaço ao "free kick", e o "match" passou a ser simplesmente jogo. Veja-se, por exemplo a constituição da equipa antes (Harry Lowe, Joaquim Ferreira, Andersen, Dick Lowe, Stuary Owen, Richard Lowe, Ângelo Seixas, John Jones, Manuel Ribeiro da Silva, Francisco Bastos e Percy) e depois (Maximiano Pereira, Manuel Morais, Henrique Faria, José Gomes Sobral, José Augusto Correia, Gilberto Silva, Manuel Barreira, Pedro Brito, Richard Lowe, Nunes e Carlos Fernandes) do corte de relações.Os "hurrahs", esses teimavam em fazer-se ouvir a cada "shoot" mais impressionante. Ao domingo, o cenário registado no Boletim do Boavista repetia-se: "O aspecto do vasto terreno arrelvado era encantador. Esplêndido dia de sol que convidava os aficionados a passarem umas horas ao ar livre, contemplando os exercícios físicos mais em voga. Não faltavam as gentilíssimas damas com as suas toilletes claras, imprimindo ao acto um cunho de distinção e alegria". Entre os rivais da Associação portuense contavam-se o FC Porto, o Salgueiros, o Académico, o Progresso, o Leixões, o Espinho, o Valadares, o Desportivo de Portugal e o Grupo Sportivo Nun'Álvares. Lembra Amândio Barros que alguns jogadores poderiam até encontrar-se num outro campeonato, envergando outra camisola, "porque se encontravam a cumprir serviço militar".A década de 20 resume-se ao início da expansão de modalidades - uma política retomada pela actual direcção - como a natação, o ciclismo, o boxe, o hóquei em campo e o atletismo, e ao aparecimento daquele que era considerado pela crítica de então como o "melhor trio defensivo do Norte": o primeiro internacional do Boavista, o guarda-redes Manuel Sousa, conhecido por Casoto, e os defesas Lúzia e Óscar de Carvalho. Na época, os atletas boavisteiros eram de tal forma apreciados que os leitores do jornal "Sporting" colocaram três deles numa selecção virtual do Porto (Óscar a "back" esquerdo, Procttor a "forward" centro e Chelas a "forward" ponta-direita).Os anos 30, recorda Amândio Barros, começaram com duas provas pouco usuais - "um torneio de tiro aos pardais e outro de tiro de guerra" -, mas terminaram com uma frontal luta pelo profissionalismo. A aprovação do futebol remunerado contra o profisionalismo encapotado que dissimulava prendas e envelopes precipitou-se com o caso Nova, um axadrezado que recebia do bolso do clube 70 escudos por semana até se vender ao FC Porto, que lhe ofereceu 150 escudos para comprar um par de sapatos de marca... O Boavista protestou, o jogador foi suspenso por um ano, a Associação de Futebol do Porto abriu um inquérito aos jogadores sem contrato e o clube do Bessa acabou por ser o mais lesado: oito jogadores em situação duvidosa valeram a suspensão do clube por três jornadas e uma multa de 12 mil escudos. O Boavista pediu a legalização dos seus profissionais e o Congresso da Federação Nacional respondeu com mais uma suspensão, desta vez por um ano. Em 1933, o Boavista estreou o novo e definitivo equipamento importado de uma equipa francesa observada pelo presidente da altura, Artur Oliveira Valença: camisola xadrez, calção preto e meia branca.Seguiu-se uma fase de poucos altos e de muitos baixos.Nos anos 40, o país foi varrido por um temporal, o desporto começava a ficar caro - uma bola inglesa Webbro custava 130 escudos -, e o Boavista teimava em cair nas divisões secundárias. O clube sobrevivia graças à carolice dos dirigentes e à dedicação dos atletas que pouco mais recebiam do que os equipamentos que envergavam. Mas o pior estava para vir com a época de 1965/66, que fica conotada com a descida aos campeonatos regionais. E foi preciso esperar pela presidência de Olímpio Magalhães, no início dos anos 70, para assistir ao seu ressurgimento.Na temporada de 1968/69, o Boavista assegurou o regresso definitivo ao primeiro escalão, o Estádio do Bessa foi inaugurado em 1972 e, em 1975, a equipa ergueu a sua primeira Taça de Portugal, com José Maria Pedroto assessorado por António Morais e Hernâni Gonçalves, registando no ano seguinte um segundo lugar no campeonato, dois pontos atrás do Benfica de Mário Wilson. Isso, pensava-se, seria o melhor que o Boavista algum dia poderia fazer...Nessa altura, já há muito que o nome Valentim Loureiro soava pelos corredores. António Silva Reis, presidente em 1962, levou-o para dirigente e o major assumiria o cargo em 1982. A partir daí, o Boavista ficou irremediavelmente ligado a uma espécie de "holding" familiar: a presidência de um clube, de uma câmara, de uma Liga, a gerência de um restaurante, de uma discoteca, de negócios de antiguidades, de têxteis, de conservas, de electrodomésticos, de "software", de imobiliário. Tudo passou pelas mãos do clã Loureiro, que sentiu uma evolução natural com a subida ao palco do mais velho dos quatro filhos de Valentim. João subiu aos quadros superiores, tornando-se o lugar-tenente do major.O advogado, curiosamente especializado em questões de direito de autor, fez carreira nos juvenis e nos júniores do clube ainda antes de vender discos na Boavista ou de se assumir como "frontman" dos Ban e dos Zero. Aceitou liderar o clube quando o pai regressou à presidência da Liga de Clubes, uma passagem de testemunho (1997) que ficou selada com dois beijos.Então, Valentim jurou não interferir na gestão do Boavista, que já dava mostras de um crescimento sustentado, ainda hoje anormal dentro do panorama desportivo nacional. A par do estatuto de adversário difícil, cresceu um património invejável - veja-se o preço de um T2 no Bessa, ou o valor por metro quadrado na zona onde o Boavista detém dezenas de hectares de terreno-, que, apesar de tudo, nunca escondeu a imagem de colectividade de bairro. Aí, pesam dois factores (ou a falta deles). Primeiro, a falta de adesão da massa associativa: são raros os boavisteiros que não tenham um primeiro clube - o próprio major namorou o Sporting e até foi sócio do FC Porto. Depois, a falta de ambição: em Novembro de 93 ficou isolado na frente e Manuel José logo avisou que aquele não era o lugar daquela equipa. "As derrotas vão chegar como sempre", disse na altura.Na história ficam ainda dois sacrifícios. O de Valentim, quando pagou do seu bolso cerca de 40 mil contos por uma quinta, onde grande parte do empreendimento boavisteiro viria a ser edificado, e o de João, que esteve para assumir o cargo de deputado na Assembleia da República, mas preferiu recandidatar-se a um mandato de três anos, na altura em que os rumores de uma SAD ganhavam forma.Abandonar o grupo dos remendados e dos remediados é uma meta do presente, personificada, em parte, pela figura do actual técnico Jaime Pacheco. Convidado para um programa televisivo com os treinadores do Alverca, Salgueiros e Leiria, Jaime Pacheco questionava o porquê de não ser chamado para fazer o mesmo com os técnicos do FC Porto, Sporting ou Benfica. E isso diz muito do seu apetite.A saudável situação financeira do clube está de tal forma assimilada que passou a ser um hábito de em Assembleia Geral serem apresentados saldos positivos, onde cada relatório corresponde a um lucro. Inadvertidamente, o vício da gestão transferiu-se para sócios e até jogadores. Aconteceu, por exemplo, quando em 1995 os sócios foram chamados a pronunciar-se sobre os investimentos do clube (a prioridade de 40 por cento era as infra-estruturas) ou quando dois anos antes até aos jogadores calhou tirar apontamentos sobre recursos humanos, marketing, função financeira, importação e exportação, gestão de recursos e mercado comunitário. Tudo sob a batuta de um professor universitário.