A beleza convulsiva dos surrealistas
Primeira tentativa de síntese sistematizada entre o universo da realidade visível e o da realidade invisível, o Surrealismo chegou a Portugal em meados da década de 30 e por aqui haveria de ficar durante praticamente 20 anos. Vindo de França, onde por esta altura se encontrava já bem estabelecido no mundo das artes e das letras parisienses, foi provavelmente o movimento artístico que maior impacto teve na arte do século XX. Qualquer surrealista que o foi uma vez nunca mais deixará de o ser. Há pouco mais de um ano, José Augusto França, Fernando de Azevedo e Marcelino Vespeira celebravam os 50 anos da fundação do seu grupo, "Os Surrealistas", nas instalações do Museu do Chiado, em Lisboa. As mesmas que agora acolhem esta grande exposição.Vinda do Museu Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo (MEIAC) de Badajoz, "Surrealismo em Portugal, 1934-1952" é comissariada por María Jesús Avila, do Museu do Chiado, e por Perfeco E. Cuadrado, da instituição espanhola. Depois de Badajoz, entre Março e Maio, e de Lisboa, onde poderá ser vista até finais de Setembro, a mostra segue para a Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, que a acolhe até finais do ano. Durante seis meses, o público português poderá ver e conhecer os anos de ouro do movimento surrealista no nosso país, protagonizado por dois grupos distintos, frequentemente antagónicos, mas que a passagem do tempo permite agora expor conjuntamente.A exposição acusa esta passagem do tempo, optando voluntariamente por não seguir uma montagem cronológica e didáctica (que privilegiasse, por exemplo, dois grandes núcleos relativos a cada um dos grupos existentes), mas as afinidades de processos, de linguagens, de suportes. Na grande sala de exposições temporárias, a visita inicia-se com duas fotografias dos dois grupos, "Os Surrealistas" e o "Grupo Surrealista de Lisboa" (esta última ausente no momento da nossa visita), seguindo-se uma apresentação quase exaustiva das obras pictóricas de António Pedro e António Dacosta, os dois principais artistas deste movimento, com algumas obras de Cândido Costa Pinto, que contrastam com as anteriores. Costa Pinto, que protagonizou uma das excomunhões do grupo em Portugal, tem um entendimento do Surrealismo mais próximo das receitas dalianas, que tanto Pedro como Dacosta souberam evitar.Uma pintura de António Pedro, "Le crachat embelli", de 1934, é considerada como a primeira obra surrealista feita em Portugal. A obra, construída a partir de manchas de cor trabalhadas a pincel, recorda, na sua simetria, as decalcomanias inventadas por Max Ernst alguns anos antes. Mas o Surrealismo português foi lírico, masculino, e o seu tema de predilecção foi o desejo físico com as componentes de dor e de violência que se lhe associam. Dacosta, que nos anos 80 seria o protagonista do regresso aos valores da pintura, foi, com Vespeira, o pintor que melhor soube entender o mundo novo que o surrealismo trazia à vida e à arte. Açoreano, mostra nas suas pinturas um universo melancólico, feito de estátuas que são também seres vivos, de pássaros e animais em praias despovoadas, e alguma recordação de um De Chirico modificada pelas imagens da sua própria infância.Se, já na primeira sala, a visita é pautada por poesias e textos surrealistas que traduzem, em palavras, os objectivos da pintura, a segunda sala é introduzida por poesias de O'Neill, Cesariny, e pelos famosos retratos de surrealistas feitos por Fernando Lemos. Com Fernando de Azevedo, Lemos trabalhou incansavelmente as possibilidades da sobreposição de imagens, dos efeitos da luz e da sombra, para traduzir ambientes irreais, onde o reconhecimento dos retratados - lá estão França, Azevedo, Cruzeiro Seixas, por exemplo - introduz o elemento surreal. Na sala seguinte, apresentam-se obras de Vespeira e, pela primeira vez, de alguns dos independentes de ambos os grupos, como o escultor Jorge Vieira. A visita prossegue com a apresentação das obras dos surrealistas. Há um grande destaque que é dado à literatura, e bem, visto que o próprio Surrealismo não fez distinção entre modos de expressão artística - e a famosa discussão sobre se a literatura surrealista era, ou não, superior à pintura, é posterior ao movimento. As obras dos poetas, como Pedro Oom, Mário Henrique Leiria, Cesariny - que está presente com um número considerável de obras sobre papel - e Alexandre O'Neill incidem, quase sistematicamente, sobre o desenho, a colagem e a poesia visual. Estão aqui, porque raramente mostradas, algumas das mais gratas surpresas da exposição.A última sala é dedicada ao jogo surrealista. E o jogo surrealista é, antes de tudo, o do "cadavre-exquis", ou do cadáver esquisito, obras colectivas escritas, desenhadas ou pintadas, onde cada participante faz o que quer, em absoluto desconhecimento da obra dos outros. O acaso é, aqui, o verdadeiro autor da obra, o gerador da beleza convulsiva de que falavam os surrealistas franceses. E que em Portugal, como em qualquer outro dos países ocidentais, teve o seu momento - até que o pós-guerra e uma arte mais preocupada com a sociedade de consumo, como o foi a Pop, tomasse o seu lugar.