"Só falta começarem a partir-me os vidros das janelas"
Aos 71 anos, Harold Bloom, professor na Universidade de Yale, é possivelmente o crítico literário mais lido em todo o Mundo. Alguns acrescentarão que é o melhor. Todos concordarão que é o mais polémico. Dos 24 livros que publicou, incluídos os dedicados a temas religiosos, o que melhor condensa as suas teses centrais em matéria de apreciação de obras literárias é "A Ansiedade da Influência" (1973), onde Bloom enumera os diversos modos pelos quais os melhores poetas - ou os mais "fortes", na sua terminologia - lidam, nos respectivos textos, com a influência exercida por precursores igualmente fortes. Estratégias que vão da tentativa de encobrir a dívida até a uma perversa forma de absorção, através da qual os textos do poeta posterior nos devolvem o poeta anterior, como se ele, na verdade, fosse o influenciado, e não o precursor. Este era ainda, como ele próprio diz nesta entrevista, um livro escrito para o interior da academia. Com o "Cânone Ocidental" (1994), é já um Bloom voltado para o grande público que passa em revista a melhor literatura ocidental de todas as épocas. A edição portuguesa, da Temas e Debates, encerra com longas listas de escritores "canónicos", que o autor entretanto repudiou e que já não constam da maioria das traduções estrangeiras do livro. Harold Bloom esteve na passada terça-feira na Fundação Luso-Americana, onde interveio na sessão de lançamento de um número da revista Portuguese Literary & Cultural Studies dedicado a Saramago - o romancista, a quem o crítico não poupa elogios, esteve igualmente presente -, e é amanhã doutrado "honoris causa" pela Universidade de Coimbra. Anteontem, Bloom foi o orador convidado de mais uma conferência do ciclo "O Futuro do Futuro", promovido pela Porto 2001. Apresentado por Maria Irene Ramalho, que sublinhou quer as suas características mais incómodas, quer as suas inegáveis virtudes de leitor infatigável e perspicaz, o ensaísta deu uma notável lição de leitura, cujo alcance só pôde ser inteiramente avaliado no final, quando se percebeu que tudo o que dissera desde o início concorria para ilustrar a tese de que certos autores carregam a influência das suas próprias personagens, uma convicção que ilustrou através do modo como Hamlet e Falstaff condicionaram a posterior escrita de Shakespeare. Falando para uma sala cheia, Bloom refreou por uma vez os seus ímpetos contra a "Escola do Ressentimento", um termo que inventou para não ter de diferenciar os múltiplos sistemas e tendências - do desconstrucionismo ao feminismo - que atacam a hegemonia do estético no domínio da crítica literária. Talvez já tivesse descarregado o suficiente nesta entrevista, dada imediatamente antes da palestra, na qual investe furiosamente contra todos os que pretendem abrir o "cânone ocidental", promovendo "obras-primas de esquimós lésbicas". Não se pode dizer que esta seja uma entrevista muito ortodoxa. Bloom teve de ser acordado pela mulher para vir falar com o PÚBLICO, estava esgotado por ter feito de carro a viagem Lisboa-Porto, e, como ele próprio confessa, tinha bebido de mais ao almoço. Depois, tem o hábito de responder antes de ouvir as perguntas, o que é provavelmente irrelevante, uma vez que, fossem elas quais fossem, diria sempre exactamente o que quer dizer. E desta vez o que lhe apetecia mesmo era zurzir no "politicamente correcto".Mal se sentou, e sem dar tempo a que se lhe pusesse qualquer questão, desatou a querer saber coisas sobre o entrevistador. Que não interessam a ninguém, mas das quais se mantiveram as que lhe serviram de pretexto para falar de Eça e Camões. Acabou por permitir que entrevistado e entrevistador regressassem às suas canónicas posições relativas, mas, de vez em quando, esquecia-se. Confessamos ter havido momentos - felizmente o gravador anda sozinho - em que também nos esquecemos de que estávamos a entrevistá-lo, tão difícil é escapar ao seu fascínio hipnótico, sobretudo quando começa a queixar-se da idade e assume uma pose teatral que faz irresistivelmente lembrar o actor Charles Laughton nos seus últimos papéis.HAROLD BLOOM - E como é que você se chama, meu caro?Queirós? Como Eça? Um romancista maravilhoso. E você é casado, tem filhos?Uma filha de seis meses.Como se chama?Inês.Como a Inês de Castro? Ainda ontem falei dela. É de partir o coração, aquela passagem onde Camões fala do sangue que cai nas rosas brancas, do pescoço de alabastro... Grande poema. Poderosíssimo, escandaloso, ultrapassa de longe tudo o que Virgílio fez. Tenho pena de não falar português. As poucas vezes que me encontrei com o Saramago, foi muito difícil fazermo-nos entender. Eu leio português, mas tenho dificuldades na pronunciação, e o inglês dele é inexistente. De modo que falamos numa mistura alucinada de francês, italiano e espanhol. O Saramago é um grande escritor e uma pessoa simpaticíssima. O que lhe ia perguntar...Vamos a isto, vamos a isto. Faça de conta que fomos amigos toda a vida, que sou seu pai, que por acaso até sou.Bem, na entrevista que deu ao "Diário de Notícias" diz que Pessoa não saiu vencedor da sua luta com Camões...Como é que se pode ganhar uma batalha a um sujeito como aquele? Um homem só com um olho, que matou outro numa rixa de rua, que sobreviveu a um naufrágio, um enorme poeta lírico. Pessoa é um poeta excelente e uma pessoa fascinante e estranha, mas creio que, para ele, foi muito embaraçoso que existisse um poeta como Camões em língua portuguesa. Virou-se para Whitman para escapar a Camões, mas também Whitman se revelou forte de mais para Álvaro de Campos. E eu adoro Campos. O que lhe ia perguntar tem a ver com isso. O facto de Pessoa ele-mesmo e Álvaro de Campos...Pessoa aprendeu inglês em criança, como Borges. Linguisticamente, é um caso estranhíssimo. E isso de escrever sob vários nomes não é único. Browning, que Pessoa conhecia bem, fez o mesmo. O caso de Pessoa não é muito diferente. Criou Campos, Reis e aquele que não funciona de todo... como se chama?Caeiro.Esse é um mito. Os poemas não são bons e o expediente é óbvio. E Reis, não é um pouco subestimado?Sem dúvida. Todavia, há esse livro extraordinário de Saramago sobre Ricardo Reis...Pessoa e Campos são ambos poetas fortes, para usar a sua expressão, e atribui-lhes precursores diferentes. Não lhe parece que, além de autenticar a multiplicidade pessoana, este facto vai ao encontro da sua insistência em que a "Ansiedade da Influência", tal como a entende, é um fenómeno entre textos literários, e não, ou não necessariamente, entre personalidades? Não me fale nisso. De todas as ideias que tive na minha pobre e velha vida, essa foi, sem dúvida, a mais mal compreendida. Claro que não se trata de influências nas pessoas, mas apenas do que acontece entre obras literárias. A ansiedade de que falo não produz uma leitura desviante [misreading] forte; é justamente o resultado dela. Não é de todo uma coisa pessoal. No "Cânone Ocidental" refere muitos ensaístas do passado e do presente. Mas não há uma única alusão a um autor que parece aproximar-se de muitas das suas posições, já para não falar do comum interesse pelo judaísmo gnóstico...Quem? Quem?George Steiner.Ah, o famoso George! Nós já conhecemos o famoso George! Não acha que há algumas semelhanças, sobretudo...Não tenho comentários. Estou certo de que é uma excelente pessoa, mas conheço-o muito mal e praticamente não li nada dele. O melhor para mim é não dizer nada. Defende que cada época privilegia um género. A poesia está em franca queda. Acha que é irreversível?A audiência da poesia anda a descer desde 1850. O poema foi substituído pelo romance. E mesmo este, apesar de exemplos tão distintos como [Philip] Roth ou Saramago, pode estar a morrer. Sinto que algo acabou com Proust, Joyce e Beckett. Decerto que alguma outra coisa tomará o seu lugar. A literatura de imaginação sempre existiu. Não há cultura, por mais recuada, que a não tivesse. Agora assitimos a este fenómeno dos best-sellers populares, que, nos EUA, são lidos por centenas de milhares de pessoas. De tudo o que escrevi nos últimos anos, o que causou mais fúria foi um pequeno artigo, até gentil, a dizer que os livros de Harry Potter não tinham qualquer valor estético, psicológico ou seja o que for. Quem o lê pode ser assaltado pelo receio perverso de que o seu talento persuasivo talvez chegasse para nos convencer tão facilmente de que Jane Austen é superior, digamos, a Henry James, como do inverso. É uma comparação fascinante. Creio que dramaticamente ela é superior. Os filmes que fizeram dos livros de Austen são muito eficazes. Com James, não funcionam. Sim, mas ele tem aqueleas ambiências tão peculiarmente singulares.Sim, sim, e foi justamente por isso que falhou como dramaturgo. Austen, se tivesse vivido mais, teria podido escrever peças de teatro. James é hoje lido nos Estados Unidos? Sabe, estou a perder a minha capacidade de indignação. Há uns anos lamentei que o grande ironista Thomas Mann já não fosse lido nas universidades. Agora tiraram-no do armário e ensinam-no outra vez. Sabe porquê? Porque conseguiram demonstrar, com base nos seus diários, que Mann era um homossexual secreto. É a pura verdade. O ironista era demasiado difícil. Recuperaram-no como autor "gay". E o mesmo aconteceu com James. É a loucura total. Quem leu "The Anxiety of Influence " (1973) - editado na Cotovia com o título "A Angústia da influência" - e, depois, "O Cânone Ocidental" (1994), verifica que a sua linguagem e argumentação se tornaram muito mais acessíveis. Foi deliberado?Aí por 1990 cheguei à conclusão de que não valia a pena escrever para um único académico. Voltei-me para o público em geral. E descobri que ele existia. Os leitores estão aí. São milhares, em todo o mundo. O que me dá forças para viajar tanto, nesta idade, é que, em todo o lado onde falo, me aparecem verdadeiros leitores. São brancos, negros e asiáticos, são homossexuais e heterossexuais, são velhos e novos, ricos e pobres. São leitores. Pessoas completamente indiferentes a todo esse lixo que se ensina nas universidades. Fora da academia não há guerra nenhuma, porque ninguém lhes liga patavina. Que livros é que o despertaram para a literatura, em criança?Cresci no Bronx e não falava inglês, só yiddish. Por isso é que a minha pronúncia é esquisita. Apaixonei-me violentamente pela poesia muito novo. Aos seis anos estava a decorar Blake e Hart Crane, os primeiros poetas que realmente amei. E pouco depois comecei a ler Shakespeare e Milton. Aos dez, encantei-me com os "Pickwick Papers" de Dickens. Hoje penso que sou muito feliz por ter nascido em 1930. Se tivesse sido em 1900, o meu estatuto de proletário judeu ter-me-ia fechado o acesso aos cursos de literatura. E se tivesse nascido em 1970, nunca me dariam emprego. Ainda que fosse dez vezes mais dotado, jamais me contratariam, porque as minhas opiniões não são aceitáveis. Mas o que se passa hoje não tem muita importância, porque estão sempre a nascer novos leitores. E se as universidades não os ensinam, eles ensinam-se a si próprios. Não é uma tragédia cultural. É uma inconveniência, uma má comédia. Tragédia é o poeta A. R. Ammons ter acabado de morrer com um cancro, ou uma querida colaboradora minha estar a morrer com um tumor na cabeça. Estas é que são as tragédias. Desculpe-me. Estou muito cansado. E encontro-me numa posição ridícula. O que podemos dizer um ao outro que não tenha já passado nas muitas entrevistas que dei? Posso tentar ser infinitamente fértil na minha condenação do actual estado de coisas. Mas não vale a pena. E se calhar foi sempre assim. A vasta maioria dos universitários sempre foi uma mistura de impostores, atrasados mentais, preconceituosos e líderes de claque. Não há nada de novo nisto. Parto em breve e tenho pena de não ter conhecido melhor Portugal. Duvido que cá volte. Estou velho e sou um mau viajante. Só sirvo para falar com as pessoas, como nós os dois estivemos a falar. De resto, sou inútil.