Planeta Sawhney
Os Badmarsh & Shri são os mais recém-chegados à chamada nova vaga asiática, ao passo que Nitin Sawhney parece cada vez determinado em afastar-se dela, abarcando toda a música do mundo. Os primeiros acabam de lançar "Signs", o segundo álbum que virão apresentar no final deste mês em Lisboa, no festival Cosmopolis. O segundo traz esta semana, ao Porto e a Lisboa, o seu novo "Prophesy", concebido numa ronda pelo planeta. Ensaios de descolagem do que são já os lugares comuns do "asian underground".
Em 1999, um álbum que interrogava "Indiano - o que é que isso significa?" recolheu os mais reverentes elogios da imprensa britânica. Chamava-se "Beyond Skin" e o seu autor, Nitin Sawhney, foi recebido como um profeta da fusão entre ocidente e oriente. Clichés à parte, Sawhney limitou-se a invocar referências que acompanharam a sua formação musical - cresceu com uma variada ementa sonora à disposição: a mãe ouvia música indiana, o pai preferia o flamenco e os ritmos brasileiros e cubanos, o irmão entrava com o funk e o rock. Indo-britânico, Nitin - que comprou o primeiro disco aos oito anos, "A Kind of Blue" de Miles Davis - é um dos nomes associados à vaga de "new Asian underground", embora os seus últimos trabalhos, como o novo álbum "Prophesy", tenham a ambição de abarcar toda a música do mundo. Por isso mesmo, o multi-instrumentista armou-se em "globetrotter" e percorreu o planeta para reunir 230 músicos num disco, da English Chamber Orchestra à Orquestra Sinfónica Brasileira, passando pelos Bollywood Strings, Natacha Atlas, aborígenes australianos, um coro de crianças do Soweto e um taxista de Chicago. Ah, e Nelson Mandela. Amanhã e depois, passará pelo Hard Club de Gaia e pela Aula Magna, em Lisboa, de regresso a Portugal para dois concertos. Obviamente, os colaboradores não caberão todos em palco, mas Sawhney traz consigo, pelo menos, a voz de Nina Miranda, dos Smoke City.P. Também é actor. Como tem sido a sua carreira de representação até agora?NITIN SAWHNEY - Isso acabou. Para ser honesto, só o fiz para me descontrair um pouco, porque tenho uma relação muito intensa com a música - aprendi a tocar música aos cinco anos: primeiro piano clássico, depois jazz, guitarra de flamenco e tablas. O que aconteceu foi que quando conheci Sanjeev [Bhaskar, actor com quem Nitin partilhava então o apartamento], começámos a fazer comédia em palco [num show concebido pela dupla, "Secret Asians"], desdobrando-nos em várias personagens. Depois a BBC contratou-nos para um programa de rádio e isso evoluiu para a sitcom "Goodness Gracious Me", que teve imenso sucesso em Inglaterra. Gostei da experiência, mas começou a tornar-se dominante e a atravessar-se no caminho da música. Na verdade, só fiz o episódio-piloto e alguns "sketches". Já faz algum tempo desde que trabalhei como actor...P. "Goodness Gracious Me" era uma paródia aos estereótipos asiáticos. A identidade racial é o elo comum em todo o seu trabalho?R. Não, tentei libertar-me disso. É exactamente o oposto: o que tento fazer agora é encarar a música como uma linguagem universal. "Beyond Skin" era isso: o álbum de alguém que não queria ser definido segundo os preconceitos das pessoas em relação ao que era esperado de mim. Isso acompanhou-me desde sempre, em Inglaterra: na escola, as pessoas faziam-me sentir que tinha de ser defensivo em relação à minha identidade indiana. De igual forma, quando fui à Índia, tive que ser defensivo em relação às minhas origens britânicas, porque não falava hindu nem panjabi. É como alguém dizer que temos o nariz grande: perdemos um tempo desproporcionado a tentar defender o nariz, em vez de seguir em frente com a vida [risos]. Sendo indiano, passei imenso tempo da minha vida a tentar encontrar formas de lidar com as pessoas... E cheguei à conclusão que quando nos dizem que temos o nariz grande, o melhor é mudar de assunto. Agora estou mais focado na música e, com ela, tento pôr em causa os desequilíbrios que vejo à minha volta. Este álbum nasceu desse questionamento das noções de mundo desenvolvido e em vias de desenvolvimento, da ideia do mundo desenvolvido como detendo tecnologia avançada, uma forte industrialização ou riqueza económica. São ideias que equaciono a partir da minha noção de desenvolvimento: para mim, é uma coisa pessoal e espiritual, algo que se vê nas crianças do Soweto ou quando se conhece Nelson Mandela, aborígenes e nativos americanos - pessoas que conseguem viver em perfeito equilíbrio com o que as rodeia e que se respeitam umas às outras.P. Em Inglaterra, "Beyond Skin" foi eleito como um dos melhores de 1999. Para trás ficavam três álbuns, mas nenhum deles com a expressão de "Beyond Skin". Tratou-se de um novo começo, isso implicou mudanças?R. Senti sempre necessidade de mudar em cada novo álbum. Eles são sempre uma reflexão do meu estado de espírito na altura. Nos primeiros três álbuns estava à defesa, enquanto que em "Beyond Skin" tive a oportunidade de parar para pensar porque é que estava à defesa. Nesse álbum questionava preconceitos que me eram dirigidos. Ao passo que em "Prophesy" questiono os meus preconceitos em relação ao mundo e as suas motivações. Vivemos numa realidade assimilada, pelo menos na forma como o mundo chega até nós, através da Internet, noticiários televisivos ou telemóveis. Para ver um aborígene ou aceder a alguma coisa noutra parte do mundo, basta-nos ligar a televisão ou enviar um e-mail. Não há nada de errado com a tecnologia, mas estamos a chegar a um ponto em que substituímos a importância da presença física pela experiência virtual e essa é uma situação perigosa. Foi isso que deu origem a este álbum. E acredito que mais pessoas se podem relacionar com ele, porque já não estou tão focado em questões para as quais estava a ser puxado. P. Em termos de sonoridade, "Prophesy" não está muito distante de "Beyond Skin", mas parece ter alargado mais o campo musical. Como se fosse menos "indiano"...R. Depende do que quer dizer com "indiano". Aquilo que sou estará sempre presente. Os meus pais são indianos, a minha forma de pensar é indiana, vou ser sempre influenciado por isso. No ano passado compus uma música para o programa "The Proms" da BBC, que muitos julgaram ser influenciado por Bach, quando na verdade era inspirado por ritmos antigos da música clássica indiana. Tudo o que faço resulta muito de conversas com os meus pais sobre os seus primeiros tempos na Índia, das minhas primeiras viagens lá quando era muito novo, mas também das minhas experiências noutros países e culturas. P. A propósito de "Prophesy", referiu: "Comecei no estúdio com o esqueleto do álbum e depois andei pelo mundo à procura da sua alma". Como foi o processo de gravação?R. Isso soa melhor no papel... [risos] Numa primeira fase, limitei-me a programar e a compor, tentando estruturar as ideias básicas. Com isso, formei uma armação do álbum e depois, para lhe conferir alguma profundidade, decidi fazer esta viagem. O que tentei foi conhecer pessoas - para mim, é importante fazer música com uma origem pura. A música é uma coisa fabulosa para se levar connosco - é só uma guitarra e, às vezes, um computador, mas consegue-se chegar às pessoas. Por exemplo, é muito difícil entrar no Soweto, ouvem-se relatos de como as pessoas que lá vão acabam sendo atacadas. Mas quando lá cheguei com uma guitarra, as crianças vieram ter logo comigo.P. Como é que o álbum foi concebido? Tinha uma ideia específica à partida e tratou-se apenas de viajar para tentar encontrar as pessoas?R. Obviamente, algumas coisas foram preparadas: a colaboração com a Orquestra Sinfónica Brasileira, com Cheb Mami e com Terri Callier. E, evidentemente, entrevistar Nelson Mandela exigiu muita preparação. Mas, ao mesmo tempo, foi importante alguma flexibilidade e abertura para conhecer pessoas ao acaso, como o taxista de Chicago, Jeff Jacobs. Foi incrível, porque ele fala de imensas coisas que me tinham ocupado durante o ano anterior. Pensei: "Isto é bom, porque outra pessoa está a dizê-lo no meu lugar." P. Quando é que começou a trabalhar em "Prophesy"?R. Comecei a pensar nele no princípio do ano passado. Mas a preparação e produção demorou apenas três a quatro meses [na verdade, foram cinco meses, de Novembro de 2000 a Março deste ano]. A viagem propriamente dita só durou um mês, e passei por seis países (apesar de algumas coisas terem sido gravadas posteriormente em França e Inglaterra). O álbum é um reflexo da viagem, mais do que outra coisa, mas é também muito londrino, porque é lá que vivo e onde estão as minhas referências. P. Como foi a colaboração com os outros músicos? As canções estavam definidas à partida ou trabalharam em conjunto para tentar encontrar os sons?R. Foi variável. Às vezes, estava tudo na minha cabeça: com "Moonrise" estava tudo preparado, sabia o que pretendia e como deveria soar. Mas às vezes fazia alterações em relação ao previsto, como "Cold & intimate" - voltei-me para a programação, quando tinha planeado um tema acústico. Obviamente, as duas partes de "Street Guru" nasceram do encontro com Jeff Jacobs. O importante era não recear o que pudesse acontecer, deixar as coisas correrem e não impor o meu ego de forma a atrasar o processo. Nem preocupar-me com o facto de estar ou não a fazer o suficiente neste disco: afinal, fui eu que o compus e produzi, tudo deriva da minha forma de olhar as coisas. P. Entrevistou Nelson Mandela e incluiu excertos da conversa no disco. Como correu o encontro?R. Perguntaram-me quem é que eu mais gostaria de conhecer. Só me conseguia lembrar de Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela - dois já morreram, portanto... Através da editora V2 e do meu "manager", conseguimos contactá-lo e ele foi muito amável em aceitar receber-me na sua casa, em Nova Joanesburgo. O momento mais memorável foi quando uma mulher entrou na sala a meio da entrevista e anunciou que um presidente cujo nome não percebi estava ao telefone e precisava de falar com ele urgentemente. Ele voltou-se para mim e perguntou: "Tem mais perguntas?" Respondi-lhe: "Mais duas ou três." Pediu-lhe para voltar a ligar dentro de cinco minutos. Foi fantástico, porque ele não fazia distinções entre mim e o presidente, embora não me conhecesse de lado nenhum. E isso, parece-me, é o que faz dele uma pessoa do futuro. Esteve sempre à frente do seu tempo, conseguiu ver sempre além das barreiras e preconceitos da sociedade. É um ser humano extraordinário: a certa altura, perguntei-lhe se os 27 anos que tinha passado na cadeia tinham valido de alguma coisa. Limitou-se a responder que sim, apesar de sentir que não tinha alcançado nada em termos individuais. Achei incrível - o Nelson Mandela a dizer que não tinha conseguido nada...P. Em 1996, a propósito da Outcaste, a editora que lançou os seus álbuns anteriores, Talvin Singh afirmava, numa entrevista à "Wire": "É fácil dizer 'Sou asiático e não é justo, não me deram quaisquer oportunidades'. A Outcaste está definitivamente a promover essa ideia. Mas de nada vai valer para a música, não é? Porque não estamos a tentar ser marginais. Então, para quê agitar essa bandeira?" Quer comentar?R. O que sinto em relação ao Talvin é que ele diz imensas coisas - e, provavelmente, concordo com algumas dessas afirmações -, mas o problema é que afirmou recentemente numa entrevista à "Q" que a música de Ravi Shankar era uma porcaria. Além de ter dito, na ocasião, que quando vai a Bombaim, as pessoas tomam-no por Deus!... É um pouco inconsistente nos seus comentários. Trabalhei com ele, conheço-o bem e ele ressente-se de tudo... não, não vou entrar por aí. Mas, enfim, eu próprio não sinto grande respeito pela Outcaste. Estive lá cinco anos e mudei-me deliberadamente para a V2 porque deixei de concordar com a recente ideologia - acho que se está a dar um sentido muito literal ao termo, sem perceber a ironia do trocadilho com "caste", do sistema de castas na Índia. Por outro lado, os interesses económicos começaram a sobrepor-se à música.