Bloom sente-se Ulisses quando lê Saramago
"Quando leio Saramago sinto-me como Ulisses tentando prender Proteu, o deus metamórfico do oceano; ele passa o tempo a fugir". A frase é do ensaísta e crítico literário Harold Bloom e foi proferida na terça-feira, em conferência, na Fundação Luso-Americana (FLAD), em Lisboa, na apresentação do número 6 da revista "Portuguese Literary & Cultural Studies", dedicada ao escritor português, cujo título é "On Saramago", uma edição do Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Massachusetts, em Dartmouth.Na presença do autor, Bloom, ainda na pele de Ulisses, acrescentou: "Desde 'Memorial do Convento' até à 'Caverna', Saramago vive numa constante mudança, não apenas de ficção em ficção, mas dentro de cada obra. Não sei como classificar nenhum dos seus livros, excepto, na minha opinião, a sua obra-prima, 'O Evangelho Segundo Jesus Cristo', o qual deve ser chamado de evangelho, ainda que traga más notícias".Bloom, na dissertação que intitulou "A Diversidade em Saramago", analisou alguns livros do autor, contextualizou-os na história de Portugal e relacionou-os referencialmente com outros escritores de renome mundial - Kafka, Stevenson, Melville, Camões, Eça, Pessoa, Blake, D.H. Lawrence -, considerando que a sua obra está cheia de elementos borgesianos ("os seus livros exaltam a liberdade através da descrição das suas terríveis alternativas") e chegando a comparar a "Viagem a Portugal" ao viajante mental de William Blake que escreve as observações de um visionário: "Como Blake, Saramago vê através do olhar, não com os olhos. O viajante mostra-nos a forma espiritual de Portugal, um misto de cultura e de história com aquilo que os olhos da alma podem ver".Bloom disse que "Viagem a Portugal" lhe deu uma "visão mais pessoal de alguém que vê como o mais poderoso romancista vivo do planeta, acima de todos os contemporâneos europeus, americanos, escrevam eles em inglês, espanhol ou português".Depois de se deslumbrar com Baltazar e Blimunda (personagens do "Memorial do Convento"), Bloom passou à "maravilhosa irrealidade" de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", salientando que se entrava de novo no inferno, ou seja, no Portugal de Dezembro de 1935, quando Salazar chega ao poder e a Espanha está a suportar a usurpação fascista: "Autos de fé passam a ser executados por metralhadores e canhões, menos agradáveis do que o cheiro a carne queimada".Bloom disse que não conhece nenhuma outra atmosfera novelesca como a ambiência do "magnificamente modelado" livro "O Ano da Morte de Ricardo Reis", no qual, "embora o Portugal de Salazar esteja sempre em fundo, nós entramos no agradável reino literário, erótico e nostálgico". É um romance que "possui uma forma estética totalmente nova, ao mesmo tempo visionária e realista" (ver caixa).Presente na sessão, Saramago repetiu a frase dita em 1998, ano em que recebeu o Nobel: "Não nasci para isto!". Foi-a dizendo ao longo dos últimos dois anos. A penúltima vez foi na terça de manhã no aeroporto de Barajas quando o motorista do autocarro que transporta os passageiros lhe disse "Bom dia, senhor Saramago, sou um seu leitor e gosto muito dos seus livros". Ali, ao lado de Harold Bloom e sabendo do olhar elogioso que o ensaísta tem sobre a sua obra, voltou a repetir, "Não nasci para isto!". E aproveitou, com alguma ironia, para dizer ao presidente da FLAD, Rui Machete, que "foi preciso tudo isto para vir pela primeira vez à FLAD: vai ter que me explicar minuciosamente a razão".Saramago salientou a importância dos estudos de Bloom sobre a literatura portuguesa, um ensaísta que "não é um porta-voz encomendado", mas alguém que "olhou para esta parte do mundo e resolveu estudá-la". E acrescentou: " É isso que lhe agradecemos: que nos estude."Saramago pediu ainda, aproveitando a presença, na mesa, do ministro da Cultura, José Sasportes - de quem partiu o convite a Bloom para vir a Portugal-, para que fosse "levado a sério a difusão do trabalho dos escritores portugueses no mundo, bem como a defesa da língua", um assunto que se mantém "ainda um pouco marginal": "O professor Harold Bloom está a dar-nos uma boleia, aproveitemo-la." Saramago referiu o trabalho desenvolvido pelo Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Massachusetts, em Darmouth (UMD), como exemplo do que se está a fazer no estrangeiro a este nível. Frank F. Sousa, fundador e director daquele centro falou da importância da revista "Portuguese Literary & Cultural Studies" no contexto do trabalho do departamento de português da UMD, uma revista semestral e interdisciplinar que já tem o próximo número anunciado e que é dedicado à poesia portuguesa de 1961 até hoje.