Paramiloidose: a doença dos pés à cabeça
Atribuem-lhe muitas procedências. "Coisa ruim", mal do estômago, má circulação, problemas de fígado ou de rins. Para o povo ficou conhecida como doença dos pezinhos. Vive do silêncio e do medo. Ataca primeiro os pés, roubando-lhes a sensibilidade, propaga-se pelos rins, pelo coração, atrofia a visão, atinge um por um os membros do corpo humano e deixa o cérebro para o fim. Chega tarde, quando a vida está encaminhada e vira-a do avesso. Só sabe o que é quem a sente.Foi assim com António Barbosa. Já tinha visto o irmão a definhar com a doença, sabia que também lhe podia caber a mesma sorte, mas só se convenceu quando a vida começou a mudar radicalmente. Pesava cento e quatro quilos quando lhe foi diagnosticada a paramiloidose. No espaço de uma semana a balança apontava menos dez. Depois passou a não conseguir evitar o "andar de astronauta", o bêbado, como muitas vezes foi apontado na rua. António tinha assistido à história do irmão, que morreu, mas não ligava. Era activo, jogava futebol, tinha energia. "Isso [a doença] não me dizia nada".Em 1939, Corino de Andrade conseguiu identificar, pela primeira vez, a doença dos pezinhos. Mas foi preciso quase uma década de estudos para chegar a um conjunto mínimo de conclusões consistentes. Hoje, sabe-se que a polineuropatia familiar (a PAF, como também é conhecida) radica num erro genético hereditário, que se traduz na produção de uma substância, a amilóide, a qual provoca a degenerescência dos nervos. A doença começa por atacar os pés, passa para as mãos, alastra para a visão e restantes órgãos do corpo.No caso de Goretti Machado, vice-presidente da Associação Portuguesa de Paramiloidose, a percepção de que algo estava mal surgiu num dia de praia. O marido, que morreu com PAF, adormeceu ao sol e nem sequer sentiu o escaldão. Tinha pouco mais de trinta anos. No historial da família - é preciso não esquecer que estamos a falar de uma doença hereditária - havia uma vaga recordação do avô, que faleceu precocemente, aos trinta e dois anos, alegadamente de febre tifóide. Na memória de Goretti Machado ficou registada uma imagem. De um primo do marido numa cadeira de rodas, a padecer de "um mal ruim". Na verdade, a identificação da doença é um fenómeno recente, que tem que passar por um complexo jogo de obstáculos, esbarrando, demasiadas vezes, no próprio desconhecimento médico.José António também tem casos de paramiloidose na família. O pai morreu, dizia-se, de má circulação. Uma irmã acabou para a vida aos dez anos e um irmão morreu com PAF com 43 anos. Apesar disto, José António recusou-se sempre a saber a verdade. Chegou mesmo a fazer uma biópsia, mas não quis saber os resultados. Até que surgiram os problemas digestivos, que os médicos não relacionaram com a hipótese de PAF. Há quatro anos que encarou o problema de frente, inscrevendo-se numa lista de espera para transplante hepático. Conseguiu transplantar o fígado há dois anos, tendo melhorado substancialmente a qualidade de vida. Hoje tem 36 anos e duas filhas, de cinco e sete anos. O desconhecimento, por um lado, e o medo, por outro, são os maiores aliados da PAF. A paramiloidose, habitualmente, só se manifesta na idade adulta, quando a maior parte das pessoas está casada e com filhos, que, por sua vez, podem ser portadores, mas só se apercebem disso tarde de mais, quando também já têm descendência. O pai de António Barbosa era portador da PAF, mas a doença nunca se manifestou. Morreu aos 92 anos, deixando quatro filhos, todos com paramiloidose. Recuando mais atrás, também o seu avô morreu sem sintomas aparentes da doença de Corino Andrade, enquanto o bisavô, onde tudo poderá ter começado, se casou três vezes, espalhando o gene por muitas e diferentes gerações. Com dois filhos e 50 anos, este paramiloidótico convenceu os filhos a fazer exames (um é portador e outro não) e também tenta persuadir os sobrinhos, embora nem sempre tenha sido bem sucedido. Simplesmente preferem ignorar e só se sentirem os ameaçadores sintomas é que saberão verdadeiramente do que se trata.Goretti Machado, por seu lado, tem três filhas, nenhuma delas é portadora da doença, mas podiam bem ser. Deste modo, a única maneira de acabar com a PAF é não tendo filhos. O alerta para a necessidade absoluta de não produzir descendência tem sido uma das principais mensagens da associação de paramiloidose.A falta de percepção do que é a PAF também se alarga à classe médica. Em Braga, por exemplo, o segundo distrito com mais casos de paramiloidose (o primeiro é o Porto, devido ao fenómeno de Vila do Conde e da Póvoa de Varzim), não há um único médico (já houve mas está reformado) com esta especialidade nas unidades de saúde, embora o Hospital de S. Marcos, em Braga, tenha equipamentos capazes de prestar assistência a paramiloidóticos. Para terem acesso a uma consulta especializada, os doentes têm que se dirigir ao Porto. Por vezes, há mal-entendidos. António Barbosa conta que quando precisou de pedir a segunda reforma, um médico de Braga recusou-se, numa primeira abordagem, a dar-lhe um comprovativo de invalidez com o argumento de que a PAF só existia na Póvoa e em Vila do Conde. "Só quem sente na pele é que sabe", repete quem por lá tem passado.