É obrigatório contar
Annie Ernaux fez a dissecação aparentemente fria da sua vida como projecto literário. "Um Lugar ao Sol" e "A Mulher" são dois momentos-chave desse projecto
Numa recente entrevista, a escritora Annie Ernaux, de quem agora se publicam, em edição conjunta, duas curtas obras, "Um Lugar ao Sol" e "Uma Mulher", afirmou: "Se escrevo, é para salvar o que já passou, fazer com que exista pela escrita, tentar compreender, explorar o que vivi sem o conhecer." Talvez esta frase possa parecer, à primeira vista, uma afirmação de circunstância. Mas quem tiver lido os textos agora publicados, ou mesmo qualquer outra obra desta autora, sabe que nela está contido todo o seu projecto literário.Foi em 1974 que Annie Ernaux publicou o seu primeiro romance, "Les Armoires Vides", de imediato referenciado pela crítica como uma obra consistente e inovadora. Mas foi só em 1984, com a sua quarta obra, "Um Lugar ao Sol" (cujo título original é "La Place"), vencedora do Prémio Renaudot desse ano, que o seu projecto literário assumiu os presentes contornos.O aspecto que se realça do conjunto da obra de Ernaux (que actualmente já consta de mais de dez títulos) é a sua radical coerência, a sua recusa de, sob qualquer circunstância, abandonar o percurso definido (ao ponto de alguns críticos, um pouco depreciativamente, falarem de um "método" Ernaux de escrita). Esta coerência parte do princípio de que toda a obra literária deve servir para evocar momentos ou figuras do seu passado pessoal que, por razões éticas e de perturbação traumática, deverão ter uma "real e definitiva" existência pela escrita. Por isso mesmo, esses momentos ou figuras do passado aparecem sempre à escritora com uma obsessiva necessidade de serem escritos, já que o seu silenciamento assume, perante a sua consciência, as características de um crime. Além disso, as marcas traumáticas advêm-lhes, em grande parte, do seu carácter de inexplicado ou não verbalizado. Por conseguinte, a sua passagem a escrita contribui para os compreender e "resolver". "Um Lugar Ao Sol" e "Uma Mulher" são, respectivamente, a evocação das vidas do pai e da mãe da escritora, elaboradas a partir da sua morte. Gente humilde (o pai foi primeiro camponês, depois operário e, por fim, dono daquilo que, em genuíno português, se chamaria uma "tasca"; a mãe foi operária e mais tarde merceeira), essa passagem das suas vidas a narrativa tem como objectivo essencial testemunhar a existência dos que não ascenderam ao estatuto de ter "voz", de possuir uma linguagem própria. Existe, portanto, para além de uma exigência ética, a necessidade de fragilmente completar o "handicap" primordial das suas vidas e de dar "eco" à dimensão de mágoa e sofrimento que este destino de silêncio lhes provoca. Como a própria Annie Ernaux anota no final de "Uma Mulher", a morte da sua mãe só se concretiza verdadeiramente após a redacção do livro que lhe dedicou. Percebe-se que o que está em jogo na obra de Ernaux arrasta consigo um enorme turbilhão de emoções. Não admira que a autora, por esse motivo, mas também por razões morais, por respeito por aquilo que narra e por necessidade de compreender com objectividade os fundamentos traumáticos do narrado, se sinta impelida a optar por um estilo de "relatório", no qual, aparentemente, abdica de qualquer "efeito" literário. Como afirmou por diversas vezes, não pretende "fazer literatura". E tem mesmo dificuldade em classificar a sua obra; situá-la-ia talvez "abaixo da literatura", entre um estudo de carácter sociopsicológico e a narração memorialista. Porém, o leitor não se iluda com esta posição antiliterária: sob as exigências éticas que a motivam, há opções estéticas bem claras. E, sob o esforço titânico em arquitectar um texto "seco e objectivo", irrompe constantemente a emoção de quem escreve. De facto, em todos os seus textos está bem expresso o intenso (e até tenso) envolvimento da autora no que é escrito, a sua ânsia quase crispada de compreender e perceber a motivação do sucedido e do narrado. Seja a sua vida conjugal ("La femme gelée"), a relação com um amante casado ("Passion simple"), a doença de Alzheimer da mãe ("Je ne suis pas sortie de ma nuit"), a ruptura com a sua origem social humilde ("Ce qu'ils disent ou rien") ou um aborto clandestino ("L'événement"). Tudo pode ser objecto de reflexão e análise, ao ponto de se poder afirmar que existe, pelo grau de exposição da sua própria vida, uma atitude de imolação da sua existência através da escrita. Pela radicalidade e exigência, a obra de Annie Ernaux é, inequivocamente, uma das mais importantes e interessantes que hoje tem origem nas letras francesas. Basta dizer que a crítica reconhece que Ernaux dá uma continuidade muito peculiar à obra de três "monstros sagrados": Simone de Beauvoir, Jean Genet e Marcel Proust. Por isso mesmo, é doloroso ver a sua obra maltratada como acontece na edição portuguesa. Não só a capa da presente edição revela mau gosto e é desadequada em relação ao conteúdo do livro, como a tradução, associada a falhas de revisão, resulta em muitas construções frásicas duvidosas. Dou somente três exemplos: "Os livros e a música são bons para ti. Mas eu não os necessito para 'viver'" (pág. 45); embrincamento de linhas na pág. 54, desfigurando o sentido do texto; "Já usava vestidos leves, de cores vistosas, mas apenas conjuntos de saia e casaco cinzentos ou pretos, mesmo no Verão" (pág. 99).