Bob Marley: A voz da ilha nos ouvidos do mundo
Tendo em conta a sua dimensão, demografia e economia, a ilha da Jamaica tem um peso desmesurado no mundo da música. Tudo por culpa do reggae, de Bob Marley e de um senhor chamado Chris Blackwell. Vinte anos após a morte de Marley, vale a pena rever o processo que o tornou na primeira vedeta "exótica".
A Jamaica é, de todas as ilhas das Caraíbas, aquela onde as influências africanas são mais fortes. Os colonizadores espanhóis exterminaram a quase totalidade dos nativos e repovoaram a ilha com escravos oriundos do Gana, Nigéria, Costa do Marfim e Angola. Ainda antes da abolição da escravatura, numerosos escravos fugiram das plantações e fundaram a nação Maroon, na selva, onde deram azo às suas tradições e cultos de origem africana. Se a nação Maroon se transformou num pólo de resistência, o colonialismo do Império Britânico estendeu-se, porém, ao resto da ilha. No início dos anos 60, as cidades jamaicanas estavam quase completamente rendidas à cultura anglo-saxónica. Até que surgem os "sound-system", espécie de discotecas volantes que organizavam festas para a população. De início, a música que aí se ouvia era essencialmente de origem norte-americana, mas a feroz concorrência levou à instalação de uma pequena indústria que começou a produzir localmente a música e os discos que se ouviam nessas festas. Sob a forte influência do "rhythm & blues" norte-americano, mas também de ritmos caribenhos como o mento ou o calipso, começam a surgir novos géneros musicais tipicamente jamaicanos. Primeiro o ska, depois o "rocksteady" e já no final dos anos 60, o reggae, o dub e, posteriormente, o dance hall. Uma ilha marcada pelo estigma do colonialismo, da pobreza e da miséria, mas também pela riqueza musical e pelo cultivo da erva, transformou-se, então, num dos mais poderosos centros de produção musical do hemisfério sul. O seu turismo, hoje outra das indústria em grande desenvolvimento na Jamaica, assenta precisamente nessas coordenadas.A primeira vedeta "rasta". Bob Marley, de seu nome verdadeiro, Robert Nesta Marley, nasceu em 1945, filho de um oficial britânico, branco, com 51 anos e de Cedella, negra, 19 anos. A mestiçagem viria, aliás, a marcar a sua música, não evitando, porém, que se transformasse no primeiro artista oriundo do Terceiro Mundo a tornar-se numa vedeta planetária. Bob Marley viveu toda a sua juventude no gueto de Trench Town - imortalizado em inúmeras das suas canções -, onde veio a conhecer Peter Tosh e Bunny Wailer. O tema central das primeiras composições de Marley baseava-se nas circunstâncias sociais de Trench Town, mais especificamente na figura dos "rude boys": maus rapazes adeptos da violência e amigos das armas de fogo, hoje considerados uma espécie de antepassados ancestrais dos "skinheads". Os três, Marley, Tosh e Wailer, formaram os Wailers cujo primeiro tema, "Simmer Dawn", veio a tornar-se um êxito comercial na Jamaica. Corria o ano de 1964. E se o ska e o "rock steady" eram ainda o género mais popular nos "sound-systems" jamaicanos, um novo tipo de música começava então a surgir: mais cadenciado, fazendo uso de uma linguagem menos agressiva e trocando a inspiração suscitada pelos "rude boys" pela dos rastas. Chamaram-lhe reggae. Os rastas eram uma seita, ainda hoje com inúmeros devotos, que seguiam a doutrina de Marcus Garvey. Fiéis a certas passagens da Bíblia, veneram Rasta Far I (que mais tarde viram personalizado na figura do imperador etíope Haile Selassie) e, geralmente, não comem carne nem cortam o cabelo, o que veio dar origem aos conhecidos "dread locks". Para os rastas, o fumo incessante de erva, mais do que um hábito, tornou-se num culto que facilitava a meditação e o afastamento de todos os poderes institucionais, que chamam, invariavelmente, Babilónia. O "rastafarianismo" professa igualmente o regresso de todos os negros a África, pátria original. Bob Marley aderiu ao rastafarianismo, como se tornou patente nas passagens biblícas que citava em cada entrevista, no consumo de erva ou na defesa da libertação de todos os países africanos. Este posicionamento filosófico, religioso e político serviu às mil maravilhas a exportação da música jamaicana e, obviamente, de Bob Marley. Chris Blackwell foi uma peça fundamental nesse processo.O pioneiro. Blackwell nasceu em Inglaterra, filho de um militar irlandês incorporado num contingente jamaicano, mas chegou à Jamaica com apenas seis meses de idade. A sua mãe fazia parte do grupo dos fazendeiros que se dedicava ao cultivo do coco e da banana. Permaneceu por lá até aos oito anos, tendo regressado ao Reino Unido para completar os estudos. Voltou à ilha das Caraíbas para se curar da poliomelite e da asma. No final dos anos 60 começa a dedicar-se à venda de discos, que importava dos EUA. Porém, a concorrência dos "sound systems" de Coxsone Dodd e Duke Reid levaram-no a abandonar o negócio e a fundar uma editora. Chamou-lhe Island e, desde aí, a história da música jamaicana transformou-se radicalmente. Se Coxsone Dodd já se tinha dedicado a gravar artistas locais no mítico Studio One, Blackwell foi o pioneiro na exportação da música jamaicana. Assinou contrato com os Wailers e começou a distribuir os seus discos em Inglaterra. Do seu catálogo constavam também outros artistas jamaicanos e muitos de origem britânica como os Roxy Music, Free, Jethro Tull ou Steve Winwood. Não só pelos laços óbvios que Blackwell sempre manteve com o Reino Unido, mas porque a emigração jamaicana para Inglaterra sempre se manteve bastante forte, este foi o destino óbvio das edições da Island. O que a Europa queria ouvir. O posicionamento político de Marley encaixava perfeitamente naquilo que a juventude branca europeia queria ouvir em meados dos anos 70. E se nos EUA eram as rádios que faziam vender discos, no Reino Unido a imprensa foi fundamental para impor a figura de Bob Marley. Os primeiros discos de Marley e dos Wailers - Chris Blackwell preferiu a utilização de um nome colectivo pelas semelhanças com os grupos de rock - chegaram à Europa em 1972. Em meados de 70, e ainda antes da eclosão do movimento punk, o rock tinha perdido a rebeldia que então o caracterizava e a voz de Bob Marley tornou-se na voz revolucionária que fazia falta ouvir. Se, politicamente, Marley encaixava no perfil do consumidor europeu, musicalmente, Blackwell tratou de "adaptar" a música de Bob Marley e dos Wailers ao ouvinte europeu. Na Jamaica, o single era o formato dominante, os raros álbuns editados limitavam-se a colectâneas. Blackwell fez com que Marley se tornasse no primeiro artista jamaicano a gravar álbuns. Propôs também uma sonoridade mais roqueira, com solos de guitarra e órgão, de forma a tornar a música mais audível pelos adeptos daquele género sendo igualmente notória a sua intervenção e dos seus produtores nas misturas finais. A actual edição das misturas jamaicanas do álbum "Catch a Fire" são disso exemplo, em contraste com a versão "europeia" que até hoje era do conhecimento geral.Legado intocável. O envolvimento político de Marley, não só na Jamaica mas também com os movimentos de libertação africanos, valeu-lhe uma tentativa de assassínio em 1976, durante um concerto que fazia parte da campanha eleitoral do então primeiro-ministro jamaicano Michael Manley. Em 1978, num outro concerto, juntou os antagonistas Michael Manley e Edward Seaga em palco durante a interpretação de "One Love", mas o protagonismo político de Marley chegou mais alto quando, em 1980, actuou durante o concerto que comemorou a independência do Zimbabué. Treze meses depois veio a falecer vítima de cancro.Vinte anos depois, a importância do legado de Bob Marley e da música jamaicana permanece intocável. Desde então, o reggae e a música jamaicana sofreram inúmeras evoluções, mas o seu legado permanece uma forte inspiração para músicos dos mais variados quadrantes. Toda a chamada "cultura DJ" emana decisivamente da cultura musical jamaicana: desde o fenómeno das remisturas inspiradas nas versões dub, aos "white labels" e até à figura dos DJs, passando pelos MC inspirados nos "toasters". A edição da colectânea "One Love - The Very Best of Bob Marley & the Wailers", além do inédito "I Know a Place", não trará grandes novidades, mas o certo é que desde o movimento punk com os Clash, à "new wave" dos Police, passando pelo ska dos Specials, até aos mais recentes Massive Attack, Asian Dub Foundation, Primal Scream, Tricky, Thievery Corporation, Roni Size, ou Fugees, todos eles se inspiraram decisivamente na música da Jamaica. Uma pequena ilha que se viu colocada nos ouvidos do mundo.