OS HERÓIS DA GUERRA PENINSULAR
Comemora-se este ano meio século sobre a data da inauguração de um dos mais controversos monumentos da cidade do Porto, erguido em memória dos heróis da guerra peninsular. Localizado na Praça de Mouzinho de Albuquerque, mais conhecida por Rotunda da Boavista, conheceu uma história atribulada, dado que a sua construção se arrastou ao longo de mais de quatro décadas.O projecto original do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular é da autoria do arquitecto José Marques da Silva (1869-1947) e do escultor António Alves de Sousa (1884-1922), que ficaram classificados em primeiro lugar no respectivo concurso, realizado em 1907. No entanto, o processo de classificação das maquetas apresentadas gerou uma grande polémica, na qual participaram arquitectos, escultores, pintores, críticos de arte e, até, militares, tendo alguns defendido a opção por um outro projecto, que apresentava um arco romano, e que tinha sido excluído pelo júri.A execução do projecto vencedor não se iniciou de imediato. Para além disso, a implantação da República em 1910 provocou, por sua vez, um atraso no início das obras para a sua construção, as quais apenas se iniciaram em 1914, sendo pouco depois suspensas, em virtude das dificuldades económicas que se verificaram durante o período da I Guerra Mundial (1914-1918).Quando parecia que as dificuldades até então existentes estavam ultrapassadas, e as obras de construção iriam decorrer em bom ritmo, ocorreu o falecimento do escultor António Alves de Sousa, co-autor do projecto. Não obstante mais este contratempo, Marques da Silva não perdeu as esperanças de um dia ver o monumento concluído, objectivo que acalentava ardorosamente. Por essa razão, ficou deveras esperançado quando, bastante tempo depois, foi convocado pelo então presidente da câmara para discutir um plano para a conclusão do monumento.Nessa reunião, de acordo com testemunho da sua filha, arquitecta Maria José Marques da Silva, publicado no Catálogo da Exposição que António Cardoso organizou em 1985 para a Secção Regional do Norte da Associação dos Arquitectos Portugueses, foi "informado pelo então presidente, prof. dr. Luís de Pina, de que a câmara dispunha, apenas, de 3000 contos para concluir as obras a executar, constituídas pela direcção e pormenorização dos trabalhos arquitectónicos, toda a escultura, fundição e obra de pedreiro, e do envasamento para cima". Marques da Silva "logo encetou diligências junto dos escultores Henrique Moreira e Sousa Caldas, da Fundição do Bolhão e da Cooperativa dos Pedreiros, à qual inicialmente tinha sido adjudicada a inconclusa empreitada". Quando elaborou o orçamento para a realização dos trabalhos que permitiam a conclusão da obra, Marques da Silva deparou com uma verba superior à que tinha sido disponibilizada pela autarquia. Ao comunicar ao presidente da autarquia a necessidade de um reforço orçamental, este terá respondido de uma forma peremptória - de acordo com o referido testemunho da filha, que assistiu ao diálogo entre os dois: "Ou você assume o compromisso de concluir o monumento pela verba que a câmara dispõe ou, dentro em pouco, eu mando demolir tudo aquilo que lá está!".Abalado com a resposta do presidente - a arquitecta Maria José Marques da Silva refere que teve "grande dificuldade em o aparar e trazer, primeiro para o automóvel e, depois, até ao leito donde, passados alguns dias, sairia para o cemitério da Irmandade da Lapa" -, Marques da Silva já não viverá o tempo suficiente para assistir à conclusão da obra em que durante tanto tempo se tinha empenhado. Será a sua filha, juntamente com o marido - o arquitecto David Moreira da Silva - que irão retomar os trabalhos e orientar a conclusão do processo de conclusão do monumento. No entanto, viram-se constrangidos a concluí-lo pela verba fixada pela autarquia, o que, obviamente, implicou que prescindissem dos seus próprios honorários. Após dois anos de árduo trabalho, particularmente dos autores dos vários grupos escultóricos, os já referidos escultores portuenses Henrique Moreira e Sousa Caldas - que introduziram várias alterações no projecto inicial -, o monumento é finalmente concluído e inaugurado, já no mandato do novo presidente da câmara, o coronel Licínio Presa.Uma vez concluído, o monumento aos heróis da guerra peninsular não conquistou grande apreço junto dos críticos de arte, nomeadamente as suas componentes escultóricas, consideradas bastante confusas. O filósofo e pensador portuense Sant'anna Dionísio, no "Guia de Portugal" que elaborou juntamente com Raul Proença, descreve-o do seguinte modo: "É um enorme obelisco (de 45 metros de altura) com duas figurações simbólicas no cimo, uma águia e um leão, de bronze. A ave esvoaçante, como avatar do declínio napoleónico, é esmagada pelo poder leonino do patriotismo anónimo do povo. O simbolismo do grupo escultórico é muito perturbado pela carência de nitidez da luta que nele se pretende sugerir. Além de incongruente, a luta entre a ave das alturas e o rei da selva é artisticamente ineficaz. No sopé do obelisco, duas composições de escultura em bronze: uma simbolizando a 'Vitória guiando a tropa e o povo'; a outra, representando a 'Catástrofe da ponte das barcas' (1808). A primeira apresenta algumas figuras vigorosas. De um lado e outro, no fuste do obelisco, vêem-se os medalhões dos generais Silveira e Sepúlveda, caudilhos das sublevações e actos de resistência ao invasor".Curiosamente, talvez interpretando a vertente nacionalista do regime de então, os autores dos grupos escultóricos optaram pela não referência da principal figura que auxiliou Portugal a libertar-se dos exércitos napoleónicos, o duque de Wellington. Se, de facto, assim foi, não deixaram de ter uma certa razão. As numerosas honrarias, títulos e condecorações, para além de uma fabulosa baixela de prata, com que então o País o agraciou, já tinham compensado devidamente o esforço do conhecido cabo-de-guerra.