Timothy McVeigh e a casa na pradaria*
Timothy McVeigh acredita que o Governo dos Estados Unidos está a conspirar para roubar a liberdade aos cidadãos. Viu nos impostos e na restrição à venda de armas os primeiros sinais da conspiração. E no confronto de Waco a prova de que a criação da "nova ordem mundial" já estava em curso. Para punir o opressor, matou 168 pessoas, em Oklahoma. Foi condenado à morte e será executado a 16 de Maio. Espera tornar-se mártir de uma causa que, distorcendo palavras que ficaram na História, apregoa: "A árvore da liberdade tem que ser regada de vez em quando com o sangue dos patriotas e dos tiranos."
Os canais de televisão dos Estados Unidos continuam a passar "Uma casa na pradaria". É a série favorita de Timothy McVeigh e o episódio de que mais gosta fala da chegada dos impostos ao velho Oeste. Uma das personagens, indignada por ter que pagar taxas, diz qualquer coisa do género: "Por este andar, um dia destes temos que pagar impostos sobre os nossos rendimentos."Timothy McVeigh acredita que, no tempo da família Ingalls, a vida era perfeita na América. Os homens viviam livres. Existia um Governo, mas estava tão distante que não se dava por ele. Se existia um perigo, bastava uma arma para o enfrentar. Um dia, o paraíso desfez-se - chegaram os impostos, o primeiro sinal da presença do opressor que se tornou cada vez mais omnipresente e omnipotente. O Governo, com as suas regras, tornou-se cada vez mais castrador. Cada vez mais controlador. Finalmente, tornou-se assassino.É no que Timothy McVeigh acredita. É a visão do mundo do responsável pelo maior e mais mortífero atentado cometido nos Estados Unidos. Um dia, McVeigh decidiu que não podia continuar passivo. "Não podia aguentar mais. Já bastava." O Governo, esse "professor de violência", provaria do seu próprio remédio. No dia 19 de Abril de 1995, McVeigh estacionou uma carrinha cheia de fertilizante transformado em bomba de grande potência no edifício Murrah de Oklahoma, onde funcionavam departamentos vários do Governo federal, e fê-la rebentar. Morreram 168 pessoas, entre elas 19 crianças que estavam na creche do prédio. A morte das crianças não lhe agradou, porque desviava as atenções, comprometia a mensagem. Seria retratado como um assassino de bebés, não como um justiceiro. "A creche... Se soubesse que existia, provavelmente tinha mudado de alvo", disse aos dois jornalistas que escreveram a biografia de McVeigh. O livro chama-se "Terrorista americano", foi posto à venda há poucas semanas atrás mas é difícil de encontrar nas livrarias. Em algumas, está escondido. Noutras não chegou sequer às prateleiras das novidades, foi directamente para o canto dos saldos. Porque é um livro de aceitação difícil. Timothy McVeigh é o homem mais odiado dos Estados Unidos. A opinião pública chama-lhe criatura infame e os sobreviventes e familiares das suas vítimas disseram que não tinha direito a falar, a explicar-se, a deixar um testemunho. Ou a voltar a ser notícia nas vésperas de morrer - foi condenado à morte e será executado, por injecção letal, no dia 16 de Maio, na prisão de Terre Haute, em Indiana. "Terrorista americano" é uma biografia. Um género literário difícil, quando a vida dos sujeitos não é extraordinária. Timothy McVeigh é um ser humano banal, pelo que o livro é bastante maçador. Nem a sucessão de teorias que, como uma droga, foi injectando em si próprio, é extraordinária. Porque Timothy McVeigh é apenas um indivíduo - se bem que, até agora, o mais radical - entre os milhares que que compõem um movimento que existe nos Estados Unidos. É um movimento feito de gente para quem o Governo de Washington é um inimigo. Pelo que, conspiram contra ele. Compram armas, organizam-se em milícias e treinam-se em campos militares. Outros, menos gregários, agem sozinhos ou quase, como McVeigh. Cada qual à sua maneira, preparam-se todos para o ataque final, que acreditam inevitável. Se o livro sobre Timothy McVeigh serve para alguma coisa, é para entender, pelo menos um bocadinho, como nasce e no que se pode transformar a corrente antigoverno dos EUA. Timothy McVeigh nasceu a 22 de Abril de 1968 em Pendleton, no estado de Nova Iorque. Quando era pequenino, gostava de ver televisão, de futebol americano e de banda desenhada. Como acontece com quase todos os rapazes dos subúrbios do interior, brincava com armas. Mas a ideia de magoar seres vivos repugnava-o e, um dia, deixou de matar sapos com a pressão de ar.McVeigh - Tim, para a família e os amigos - assistiu ao divórcio dos pais e à partida, para outras paragens, da mãe. Quando terminou o liceu, empregou-se no Burger King e teve um caso amoroso com uma colega mais velha. Depois, despediu-se e decidiu passar algum tempo a pensar o que queria fazer da vida. Nas entrevistas que deu para a construção da sua biografia, explicou que precisou de um período de reflexão, de definição de gostos. Tim McVeigh concluiu que gostava de armas de fogo, pelo que dedicaria o tempo à literatura sobre armas. Nos Estados Unidos, a literatura sobre armas de fogo é panfletária. É produzida por gente que pertence à corrente que acredita que o Governo quer proibir a circulação das armas para impedir os cidadãos de se protegerem. McVeigh acreditou em tudo o que leu. E, no final da autodoutrinação, tornou-se "sobrevivencialista". O sobrevivencialismo é apenas uma das muitas correntes antigoverno. São pessoas que não aceitam que a passagem do tempo muda o mundo e que as leis têm que ser moldadas à medida do comportamento dos seres humanos. Definem-se como defensores da segunda emenda da Constituição, que diz que "uma milícia bem apetrechada é necessária para a segurança do Estado, pelo que o direito do povo ter armas de fogo não deve ser infligido". Quando a emenda foi escrita, há 200 anos, os EUA acabavam de declarar a independência e os cidadãos tinham o dever de estar preparados para o combate, se fosse preciso enfrentar as tropas inglesas. Os homens deixavam as armas à porta, para poderem estar prontos para a guerra num minuto e é por isso que se chamavam "minute man" (homens-minuto). O direito à posse de armas de fogo tornou-se um sinónimo da liberdade e independência nos Estados Unidos. Os sobrevivencialistas acrescentaram pontos a este princípio. Acreditam que, um dia destes, o Governo federal lhes baterá à porta e lhes levará as armas. Também não gostam de pagar impostos. Ou de limitar a sua liberdade em nome do bem-estar dos outros - McVeigh ficou irritado quando, um dia em que treinava a pontaria no quintal da casa do pai, um vizinho fez queixa à polícia; o homem não aguentava o barulho e tinha medo que um dos filhos fosse atingido. McVeigh leu na reacção do vizinho a confirmação do sucesso da lavagem ao cérebro a que o Governo estava a submeter os cidadãos. Decidiu preparar-se para o dia do "ataque final". Como os outros sobrevivencialistas, armazenou armas, munições, água e mantimentos. Acreditava de tal forma estar no caminho certo, e confiava tanto na capacidade de se auto-educar, que pouco depois de se inscrever num curso de economia e finanças de uma universidade, desistiu. "Não preciso de um canudo para triunfar." Percebeu rapidamente o erro de avaliação. Sem um diploma, conseguiu apenas um emprego de segurança. Não se culpou, nem às suas opções, pela incapacidade de encontrar uma ocupação bem remunerada. Culpou o Governo e os programas de apoio às minorias - disse para si próprio que se os empregos não fossem todos dados aos negros, teria conseguido realizar o sonho de se tornar polícia. McVeigh passava o tempo que o trabalho de segurança lhe deixava livre a ler livros como os "Turner Diaries", a bíblia dos sobrevivencialistas que é também um manifesto racista e anti-semita. No livro, escrito por William Pierce, antigo chefe do Partido Nazi dos EUA, o herói declara guerra ao Governo e destrói a sede do FBI (polícia federal). Também via filmes, todos sobre homens em cenário pós-catástrofe. "O Planeta dos Macacos", por exemplo. Outra série que não perdia: "O Caminho das Estrelas - a 2ª Geração". Mais tarde, disse que se identificava com todas as personagens. Como o comandante Picard, podia ser "um diplomata hábil e o homem mais respeitado" da tripulação; como Worf, era "um guerreiro", como Data, amava a "lógica".O vazio profissional empurrou McVeigh para as Forças Armadas. Alistou-se porque poderia aperfeiçoar o conhecimento sobre as armas. Escolheu o Exército, onde conheceu Terry Nichols, o cúmplice no atentado de Oklahoma. Nichols estava convencido, tal como McVeigh, de que o Governo só existia para lhe fazer mal. Por causa dos impostos, dizia, perdera a quinta e ficara arruinado. No quartel, Nichols e McVeigh passavam horas a discutir as últimas notícias sobre a "conspiração": os EUA e as Nações Unidas tinham-se unido para controlar o mundo e limitar os direitos dos indivíduos. Aos 22 anos, McVeigh foi chamado para a Guerra do Golfo. Deixou o Kuwait a acreditar que o Governo se tornara assassino. Não hesitava em matar outros para impor ao mundo as suas regras e princípios. E, mais grave, obrigara-o a matar, a tornar-se instrumento da criação da "nova ordem mundial". Pouco depois do regresso aos EUA, McVeigh abandonou o Exército. Voltou à casa do pai com medalhas ao peito, com a certeza de ser um herói. Percebeu rapidamente que, no mundo civil, chapas metálicas penduradas ao peito não substituem um diploma universitário. Frustrado com a falta de consideração do mundo para com um veterano de guerra, regressou ao emprego mal pago de segurança. E decidiu continuar a investir em armas, certo de que no dia em que os sistemas monetários desaparecessem, as armas substituiriam o dinheiro e ele seria um homem rico. Nos anos que antecederam o atentado, deixou o emprego - explicou que estava a consumir-se de angústia, por não sentir que pertencia a lado algum; houve um momento em que lhe passou pela cabeça o suicídio. Cruzou os Estados Unidos, fazendo do automóvel casa e, um dia, bateu à porta de Nichols, que deixara também a farda e, no Arizona, vivia com a mulher filipina, uma noiva por correspondência. A mulher de Nichols representava o paradigma da mulher para McVeigh - silenciosa e submissa. McVeigh tentou fixar-se num estado. Estudou as legislações de todos os 50 territórios que compõem os EUA, tentando perceber qual deles era o mais livre, o que cobrava menos impostos. Não encontrou o paraíso.Tornou-se errante, viajando para todas as feiras de armas, onde fazia pouco negócio e muita actividade de "profeta". Distribuía panfletos antigoverno, conversava com o público, tentando recrutar mais um membro para a causa. Discutia a "conspiração" com os colegas. Entre 1994 e 1995, o Governo federal aumentou a pressão sobre os fabricantes e comerciantes de armas. A venda livre tornara-se demasiado perigosa. Pelo país, sucediam-se os tiroteios, sucediam-se as mortes. Homens desesperados ou deprimidos entravam em casas de hambúrgueres, escritórios ou centros comerciais e despejavam a raiva e as balas para cima de qualquer um. O terror começava também a chegar às escolas secundárias, onde adolescentes começavam a matar colegas e professores por razões que não há quem saiba explicar. A única justificação possível para os crimes: os tiroteios aconteciam porque as armas eram demasiado acessíveis. Algumas foram proibidas. McVeigh e os seus interlocutores só viram a proibição. Volta e meia, McVeigh regressava à casa de Terry Nichols. Gostava de contar histórias da guerra aos agricultores das redondezas. Disse-lhes, por exemplo, que o Governo lhe tinha injectado um "chip de computador no rabo", para poder seguir-lhe o rasto. Os agricultores acreditaram, pareceu-lhes uma atitude lógica por parte de um Governo prepotente. Um dia, os "rapazes" ensinaram-lhe a fazer bombas de fertilizante agrícola. O ódio de McVeigh para com o Governo continuou a cresceu. Alimentado por livros, conversas e rumores. Em 1993, aconteceu o ponto de viragem. O momento em que McVeigh passou de "profeta" a "guerreiro" no conflito contra a "nova ordem mundial". Em Waco, no Texas, tropas federais cercaram um rancho onde estavam entrincheirados membros de uma seita apocalíptica. O líder do grupo, David Koresh, transformara o rancho num "bunker" onde armazenara armas e químicos. Ao fim de 60 dias, no dia 19 de Abril de 1993, o cerco terminou com uma troca de tiros. O "bunker" incendiou-se e os membros da seita morreram.McVeigh esteve duas vezes em Waco. Precisou de ir, disse, para assistir, ao vivo, ao opressor em acção. Não admitia o direito do Governo em proibir Koresh e os seus seguidores de possuírem armas ou de viverem como lhes apetecesse. "Acredito que estamos a tornar-nos um Governo socialista. O Governo é cada vez maior e mais poderoso, e o povo precisa de aprender a defender-se do controlo do Governo", disse a uma jornalista de uma publicação universitária. Queixou-se também de não ser autorizado a aproximar-se do rancho - se estes são terrenos públicos, que direito tem o Governo de me proibir de circular?, perguntou.Nos meses que se seguiram à tragédia de Waco, McVeigh passou centenas de horas a visionar vídeos da vida quotidiana da seita de Waco. As mulheres pareciam serenas, o que desmentia a imagem propagada pelo Governo que dizia não passarem de escravas sexuais de Koresh. As crianças pareciam felizes, não estavam em perigo como dizia a propaganda do "inimigo". E o Governo matara-as.Timothy McVeigh decidiu dar uma lição ao Governo. Uma lição tão grande que não seria esquecida. No dia 19 de Abril de 1995, no segundo aniversário de Waco, o edifício Murrah de Oklahoma foi pelos ares. Timothy McVeigh, circulando em excesso de velocidade, foi parado pela polícia a algumas centenas de quilómetros do lugar do atentado. Chocada, a opinião pública acreditou que a carnificina resultara da acção de terroristas árabes. Porém, a coincidência da data alertou imediatamente os "profilers" do FBI. O assassino deveria ser um homem, branco e relativamente jovem. Depois da explosão, McVeigh entrou num automóvel e começou o caminho para fora de Oklahoma. Foi parado pela polícia porque circulava em excesso de velocidade. Dentro do carro, foi encontrada uma arma não registada. E foi preso, absolutamente por acaso. Tinha vestida uma "t-shirt" com uma frase de Thomas Jefferson, o terceiro Presidente, o homem que escreveu a Declaração da Independência e que, num dia em que o contexto dava sentido às palavras, disse: "A árvore da liberdade deve ser regada de vez em quando com o sangue dos patriotas e dos tiranos." McVeigh olhou para o espelho e viu-se no papel de patriota. É por isso que não tem remorsos. "Aos que perderam seres queridos digo que lamento, mas acontece todos os dias. Não são as primeiras mães que perdem filhos, ou os primeiros avós que perdem netos. Acontece todos os dias, em alguma parte do mundo." "[As pessoas] podem ser inocentes individualmente, mas são culpadas porque trabalham para o império do mal." "Eu não escrevi as regras deste conflito. As regras, ainda que não escritas, foram definidas pelo agressor. Foi brutal. Mulheres e crianças foram mortas em Waco. Atiramos à cara do Governo exactamente aquilo que nos estão a dar."Pode-se especular, pelas palavras de Timothy McVeigh, que, se não tivesse existido Waco, não teria existido Oklahoma. Pode-se especular que, se não tivessem morrido crianças, a indignação não seria tão unânime, talvez se ouvissem vozes, de entre o movimento antigoverno, que é invisível porque é feito de gente banal mas não é subterrâneo, a defender Timothy McVeigh. A acenar a cabeça, em sinal de cumplicidade, perante frases como esta: "Um psiquiatra pode olhar para o que tenho para dizer e decidir 'ele é um psicopata ou um sociopata. Ele não tem respeito pela vida humana'. Longe disso. Tenho grande respeito pela vida humana. A minha decisão de tirar vidas... não o fiz em meu nome. Fi-lo em nome de um bem maior."É em nome desse movimento que Timothy McVeigh, 32 anos, diz ir morrer. Aspira tornar-se mártir da causa. Já ganhou o título de "terrorista", que se dá aos que matam precisamente por terem causas, aos outros chama-se simplesmente assassinos. E, glória maior, será executado. Haverá prova maior de que o Estado anda a assassinar os patriotas que só querem defender a liberdade?* Fonte: "American Terrorist", de Lou Michel e Dan Herbeck, editado por Harper Collins.