Apoteose musical da natureza
"A Raposinha Matreira", uma das mais belas óperas do checo Janacék, terá a sua estreia portuguesa, na próxima segunda-feira, dia 30, em Lisboa. Uma homenagem ao amor pela floresta e à melancolia do Outono da vida.
Leos Janacék (1854-1928) foi um dos mais geniais compositores de ópera do século XX, mas a sua obra é ainda relativamente pouco conhecida do público português. No ano passado, a notável produção de "Jenufa" levada à cena no São Carlos foi o ponto alto da temporada, deixando-nos com água na boca para conhecer melhor a fascinante dramaturgia musical do compositor checo. Chegou agora a vez de "A Raposinha Matreira", verdadeira apoteose musical da natureza e uma das obras mais amadas pelo seu autor, que terá a sua estreia em Portugal no próximo dia 30, no Teatro Nacional de São Carlos. Trata-se de uma co-produção com a Ópera "Janacék"/Teatro Nacional de Brno (República Checa), com direcção musical de Jan Zbavitel (o mesmo maestro que dirigiu "Jenufa") e encenação de Václav Veznik.As aventuras da Raposinha Matreira foram publicadas pela primeira vez em 1920, num jornal diário de Brno. Tratava-se de uma pequena novela do escritor Rudolf Tesnohlídek, escrita sob a forma de legendas humorísticas para os desenhos do pintor Stanislav Lolek. De entre os 23 capítulos originais, Janacék seleccionou os dez que lhe pareceram mais apropriados, alterou a ordem dos acontecimentos, eliminou algumas personagens e dotou a história de um sentido filosófico. Graças ao seu apurado instinto dramático, inventou analogias entre os humanos e os animais (Padre/Texugo, Professor/Mosquito, etc.), atribuindo a estes últimos um catálogo de arquétipos das virtudes e dos vícios humanos.A obra começa por descrever as belezas da floresta. Enquanto o guarda florestal Bartos dorme a sesta, os animais brincam alegremente. Entre eles está Bystrouska, a Raposinha Matreira, que persegue uma rã. Esta foge, aos saltos, e acorda o guarda florestal que captura a Raposa e a leva para casa, afastando-a do seu próprio mundo. Além de ser confrontada com o reino humano, a raposinha irá também travar conhecimento com os animais domésticos - é assediada pelo cão Lapák e objecto de troça das galinhas... -, mas a sua astúcia faz com que leve sempre a melhor. Consegue fugir novamente para o campo onde continua a fazer a suas tropelias, enquanto os humanos prosseguem embrenhados nos seus problemas: o Padre está infeliz porque tem de mudar de paróquia, o Mestre-Escola sofre de amor pela menina Teryka, proprietária da confeitaria local. Entretanto, a Raposinha apaixona-se por Risca Dourada, uma bela raposa macho, com quem constitui uma numerosa família, mas os seus dias estão contados. Depois de muitas peripécias, o seu destino será servir de estola de peles da menina Terynka! O tempo passa e o guarda florestal envelheceu. Uma das suas habituais sestas na floresta é interrompida por uma raposa bebé que persegue uma rã. O guarda tenta apanhá-la, mas apenas consegue agarrar a rã. "Lembro-me de ti", grita. Mas esta responde-lhe: "Não era eu, era o meu avô!" Bartos toma então consciência do milagre: na natureza não há morte, apenas um eterno renascer.Quando terminou a ópera - foi estreada em 1924, no Teatro Nacional de Brno - Janacék tinha quase 70 anos, mas esta é uma das suas obras mais frescas e luminosas, contrastando com o destino sombrio e trágico das heroínas das suas obras anteriores. Com "A Raposinha Matreira" o compositor pretendeu prestar "uma homenagem ao amor pela floresta e à melancolia do Outono da vida". O tema da morte é tratado sem sentimentalismo e sob a perspectiva da renovação. As imagens literárias e musicais são cíclicas, como as estações que vão e vêm, enquanto os humanos vão envelhecendo, confrontados, uma e outra vez, com a presença da juventude. As vozes de criança (utilizadas, por exemplo, para a raposa-bebé, o gafanhoto ou a rã) acentuam esta dimensão. A forte ligação do compositor com esta temática pode depreender-se dos seus diários, nos quais anotava o canto dos pássaros ou descrevia a vida das várias gerações de melros que faziam ninhos no seu jardim. De acordo com os desejos de Janacék, a maravilhosa cena final da "Raposinha Matreira" foi representada no seu funeral.Para conferir unidade formal às suas óperas, Janacék não recorre nem ao "leitmotiv" wagneriano nem às formas fechadas, mas sim à variação de motivos melódicos e rítmicos, que retoma livremente e que respondem à lógica interna do drama. Na "Raposinha Matreira" a floresta é animada por sugestivas células musicais de carácter improvisatório que percorrem a teia musical do mesmo modo que as borboletas rodopiam em torno das flores. Algumas nascem e morrem no espaço de um compasso, enquanto outras se tornam reconhecíveis ao longo da acção, em particular a breve figura melismática que acompanha a Raposinha. E da livre articulação destes motivos com as chamadas "melodias da fala", delineadas a partir das curvas melódicas da linguagem, que assenta a originalidade da produção operática de Janacék. A sua obra vocal encontra-se intimamente ligada a esta exploração das peculiaridades musicais da língua checa, um dos principais factores para a criação de um idioma musical nacional, na sequência das tentativas empreendidas pelos seus antecessores oitocentistas, Smetana e Dvorák. Uma das maiores dificuldades encontradas por estes compositores prendia-se com o facto de não disporem de meios convincentes para produzir ópera em língua checa. O alemão era a primeira língua numa boa parte do território e o próprio Smetana - o "pai" da ópera nacional checa - falava alemão, tendo aprendido checo quando já era adulto. A sensibilidade linguística de Janacék, aliada ao cepticismo com que encarava as convenções operáticas, ajudou-o a superar o problema. Desde os anos 80 que o compositor fazia recolhas de música popular na Morávia, cuja influência começou a incorporar nas suas próprias obras. No decurso dessas expedições começou também a anotar excertos do discurso falado em notação musical - as chamadas "melodias da fala" - que viriam a desempenhar um papel significativo na sua produção posterior, em especial a partir da ópera "Jenufa" (1903). "Quantas variações da melodia de uma única palavra existiam! Aqui brilhava e esbatia-se, ali endurecia e tornava-se penetrante. Mas senti algo ainda mais profundo na melodia da fala, algo ainda não descoberto que não estava à vista. Senti que a melodia da fala continha dentro de si as sequências de histórias íntimas escondidas", anotou no seu diário.A paixão patriótica é outro elemento essencial da obra de Janacék, encontrando-se implícita no seu recurso às fontes tradicionais e na recusa da cultura alemã - é significativa a preferência por fontes russas, por exemplo nas óperas "Kátia Kabanova" e "Recordações da Casa dos Mortos", baseadas respectivamente em Ostrovski e Dostoiévski. Mas os traços mais impressionantes do seu génio encontram-se nos múltiplos retratos femininos, quase sempre dotados de uma dimensão trágica. Neles se cruzam o erotismo e as paixões violentas, a fragilidade e o peso das convenções sociais, mas também a figura da mulher autoritária e possessiva. Em "Jenufa" é cometido um infanticídio - a madrinha mata o filho ilegítimo protagonista para salvar a sua honra - e Katia Kabanóva acaba por se suicidar. A infinita riqueza das descrições musicais da feminilidade é extensiva à própria Raposinha Matreira, que simboliza simultaneamente o amor sensual e o amor maternal, mas que também não escapa ao destino da morte, nas mãos do inimigo, ainda que neste caso esta seja desprovida de fatalismo. Com a sua música deliciosa, é o milagre da renovação, perpetuado pela cria da própria Raposinha que retoma o ciclo da vida, o que mais nos deslumbra e emociona.