As imagens da "invisível" guerra na Argélia
Quase uma década de conflito, mais de 100 mil mortos, e praticamente nenhumas imagens. A Arte mostra três documentários sobre a Argélia e uma guerra que começa finalmente a revelar o rosto dos seus protagonistas.
"Nas representações desta guerra na Argélia, o importante é a persistência da ausência, a sensação do 'vazio' de imagens", escreve o historiador Benjamin Stora no seu livro recém-editado "A guerra invisível - Argélia, anos 90". Ao contrário, por exemplo, do conflito israelo-palestiniano, onde existe provavelmente um excesso de imagens devido ao elevadíssimo número de jornalistas e de câmaras por metro quadrado, a guerra civil em que a Argélia mergulhou desde 1992 é "invisível". O país "onde há muito o acesso das câmaras está interdito, transforma-se assim num cenário mergulhado na sombra".Na próxima 5ª feira, dia 3, a Arte mostra três documentários que tentam quebrar essa invisibilidade: "Le rêve de Sisyphe - Algérie, la réconciliation?" e "Le glaive et le croissant", ambos de Faouzia Fekiri, e ainda "Algérie, mon amour, Algérie pour toujours" de Philippe Nahoun e Djillali Hadjadj.O primeiro centra-se numa das principais questões com que se debate hoje a sociedade argelina, a política de reconciliação nacional defendida e aplicada pelo Presidente Abdelaziz Bouteflika, e à qual muitos, dentro e fora dos círculos do poder, se opõem. Como quer o Presidente que pessoas que viram as suas vidas destruídas pelos islamistas armados, que viram a sua família ser barbaramente assassinada, aceitem agora que os carrascos voltem para as suas aldeias e se cruzem com eles todos os dias nas ruas, nos mercados? A impunidade dos culpados será o preço a pagar pela paz?Estas são as perguntas que muitos fazem desde que Bouteflika anunciou uma amnistia para os islamistas armados que, não tendo estado directamente envolvidos em crimes de sangue, aceitem depor as armas - muitos deles, sobretudo do Exército Islâmico de Salvação (EIS), o braço armado da Frente Islâmica de Salvação (FIS), decidiram fazê-lo.É o horror desta convivência forçada entre os criminosos e as vítimas que o primeiro documentário de Fekiri mostra. Em Oued Hamlil, a 200 quilómetros de Argel, uma aldeia particulamente afectada pela guerra, os filhos e a viúva de um islamista morto enfrentam uma quase impossível integração ao regressarem de três anos a viver com a guerrilha. Kamel, de 11 anos, e a sua irmã Fátima pedem a ajuda das pessoas para comer, mas a sua mãe não se atreve a sair da casa, contra a qual, por vezes, os vizinhos lançam pedras. "Roubam-me o dinheiro e batem-me, repetindo que o meu pai é um terrorista, um degolador", conta Kamel.O segundo trabalho da mesma realizadora parecia quase impossível de fazer ainda há dois anos. Fekiri conseguiu acompanhar Youcef, um membro do Grupo Islâmico Armado (GIA) prestes a tornar-se um arrependido, aos campos de treino da guerrilha onde esteve, sozinha, quatro dias e três noites. Em paralelo, acompanhou Salim, um inspector das brigadas especiais anti-terrorismo, que habitualmente mantêm o maior secretismo em relação às suas acções. Falando abertamente com ambos, a realizadora tenta compreender o processo desta guerra "secreta". Os dois homens, vindos do mesmo meio social, explicam as respectivas opções e falam das grandes vítimas deste conflito: a população civil, que há nove anos vive entre o terror dos islamistas armados e a desconfiança em relação aos militares. O terceiro documentário não se centra tanto no conflito, mas numa questão que é, no fundo, consequência dele: a distância que existe entre o que a Argélia, com todo o seu potencial, poderia ser, e o que é. Numa espécie de "road movie" por um país que começa a conhecer uma relativa pacificação, os realizadores Nahoun e Djillali vão descobrindo os problemas quotidianos que enfrentam os argelinos, "mergulhados na mais negra miséria".Cenário na sombra. Um conflito sem imagens não é mediático, não interessa aos jornalistas. Como fazer - diariamente, semanalmente? - a contabilidade macabra dos mortos? Acrescentando pontos e números a um mapa do país, como mostrava um documentário recente sobre a Argélia? Curiosamente, nos últimos meses em Portugal tivemos a oportunidade de ver - num ciclo organizado pela Cinemateca de Lisboa e noutro integrado nos Encontros Internacionais de Cinema Documental da Malaposta - vários documentários e filmes de ficção realizados na Argélia ou por realizadores argelinos actualmente no exílio. E muitos deles constituem um exemplo dessa dificuldade de falar de uma "guerra invisível".Em "Femmes en Mouvements", por exemplo, realizado por Merzak Allouache em 1990, quando o conflito com os islamistas estava apenas latente, as argelinas laicas, feministas, defensoras dos direitos das mulheres, davam a cara e falavam abertamente para a câmara - nessa altura eram as islamistas, as que vinham dizer que tudo é pecado, que as mulheres não podem trabalhar e que "hoje elas só querem é andar despidas e dançar nas ruas", que se escondiam por detrás de efeitos de imagem para não serem reconhecidas. Mas em "Une femme táxi à Sidi Bel-Abbés" de Belkacem Haadjadj, realizado em 2000, ou seja, dez anos depois, e onde praticamente todas as mulheres aparecem com lenços a cobrirem-lhes os cabelos, são muitas as que se recusam a aparecer e a falar para a câmara, por medo dos irmãos, dos pais ou dos maridos. Particularmente simbólico é "Algérie, les enfants parlent", de Kamal Dehane, exibido recentemente na Malaposta. Filmado em 1999, o documentário reúne três realidades: as entrevistas com os argelinos que vivem já legalmente exilados em França, e que falam à luz do dia, de frente para a câmara; as conversas com os que imigraram clandestinamente e que ainda têm medo de se mostrar; e, por fim, com os que continuam a viver na Argélia, sempre em contraluz, vozes carregadas de dor que saem de dentro da escuridão. "Um território de luz, situado a Sul, está ensombrado por uma imensa mancha negra", escreve Stora. "A Argélia transforma-se num cenário mergulhado na sombra".