A espiral do medo de Benjamin Britten
Que segredos se escondem quando as velas se apagam? Esta é uma das muitas inquietantes perguntas que surgem no espírito do leitor da mais controversa novela de Henry James, "The Turn of the Screw" (1898), ou do espectador da belíssima ópera homónima de Benjamin Britten, composta em 1954 para a Bienal de Veneza a partir de um genial libreto de Myfanwy Piper. Esta história de fantasmas, onde a corrupção e a inocência assumem uma misteriosa ambiguidade e onde a essência do terror provém sobretudo da nossa imaginação, subirá esta noite ao palco do Teatro Nacional de São João no âmbito da programação do Porto 2001. Trata-se de uma co-produção do teatro portuense e da Casa da Música, cuja programação operática tem primado pela ousadia e pela imaginação. Com encenação de Ricardo Pais, a interpretação cabe precisamente ao Estúdio de Ópera do Porto, uma estruturas que passará a residir no futuro edifício de Rem Koolhaas. Este novo desafio coincide também com o primeiro encontro das duas estruturas mais emblemáticas da Casa da Música: o Estúdio de Ópera e o Remix-Ensemble, que se vê assim confrontado pela primeira vez com uma obra de grandes dimensões (ver caixa).Numa casa de campo em Bly, a preceptora de duas crianças orfãs, Miles e Flora, descobre que estas estão sob a influência dos fantasmas do antigo pagem Peter Quint e da antiga preceptora Miss Jessel, por ele seduzida. Na novela de Henry James, uma obra de ficção psicológica, nunca sabemos se os fantasmas são reais ou fruto da imaginação, uma vez que estes permanecem silenciosos, mas o libreto de Myfanwy Piper dá-lhes voz, uma voz que será acentuada pela maravilhosa música de Britten. Todavia, o compositor e a libretista afirmaram que isso não implica a alteração do teor da novela de James - a história é apenas transposta para outro contexto. Objecto de várias adaptações cinematográficas - das quais a mais célebre será provavelmente The Innocents" (1961), de Jack Clayton -, teatrais e inclusive radiofónicas, esta foi objecto de leituras mais ou menos ousadas, desde a pura história de terror às insinuações sexuais mais ou menos explícitas.Conforme Clifford Hinley expõe num artigo publicado na revista "Music Quartely" (nº 74, 1990), ao dar voz a Quint - na estreia a voz de Peter Pears -, Britten não só lhe confere uma existência real como define a natureza da sua personalidade. O seu canto é de uma grande sensualidade, a começar pelo belíssimo melisma sobre o nome de Miles, deixando transparecer o seu amor pelo rapaz. A instrumentação que o acompanha, com grande proeminência da celesta e da harpa, não é sequer habitualmente ligada às figuras fantasmagóricas.Embora comum, esta é apenas uma entre muitas leituras, que o encenador poderá ou não acentuar. Na proposta de Ricardo Pais permanece a ambiguidade. Por um lado, os fantasmas surgem bem reais e ameaçadores, ampliados no fundo do palco por projecções de vídeo, mas, por exemplo, na cena em que Peter Quint induz Miles a roubar a carta que a preceptora escreveu ao tutor, ficamos com a sensação de que tudo se passou num sonho. A própria encenação encarna uma outra ambiguidade, combinando os belos figurinos de António Lagarto (também autor da cenografia), que apontam claramente para a época vitoriana, com o recurso à tecnologia - o vídeo de Fabio Iaquone. Na perspectiva de Ricardo Pais, "as imagens, monitorizadas ao vivo a partir de microcâmaras, ultrapassam o seu mero potencial cenográfico para adquirir o valor da metáfora." O vídeo amplia as figuras fantasmagóricas - e por vezes os restantes intervenientes, incluindo os músicos, em pontos chave da acção - ou fornece o enquadramento das cenas como o lago, o jardim ou a torre, algumas delas de grande beleza plástica, mas sempre sinistra, sublinhada pelo desenho de luzes de João Paulo Xavier. Os adereços em palco são mínimos - e por vezes minimalistas, como o comboio eléctrico, onde chega a preceptora, ou o piano de brincar que serve para Miles demonstrar os seus dotes virtuosísticos - , o que terá não só uma intenção estética mas prática, com vista à futura itinerância da ópera. Há também um pertinente sentido do pormenor - a boneca de Flora, com a sua frondosa cabeleira cinzenta é uma cópia de Miss Jessel, a cortina que acompanha a saída dos fantasmas faz de dossel da cama de Miles... Tal como o parafuso que roda, a obra de Britten desenvolve-se como uma espécie de espiral do medo. As personagens vão ficando cada vez mais encurraladas, tal como o peixe no aquário que permanece num dos lados do palco. O universo já de si sombrio da obra é ainda mais acentuado por Ricardo Pais - que chega a transformar a cena matinal dos sinos e a ida para a missa num sinistro cenário nocturno à luz de velas - e vai progredindo em crescendo até à inevitável morte de Miles, evocando o título da obra, "The Turn of the Screw", que traduz com a mesma força o seu carácter dramático e o plano da estrutura musical. A tensão é mantida através das voltas de um "parafuso musical" - o tema dodecafónico que acompanha Peter Quint - que se sucede numa intrincada série de variações dotadas de um extraordinário poder de sugestão e um refinado colorido musical. A ópera é constituída por um prólogo e dois actos com 16 cenas, ligadas por 16 interlúdios orquestrais, vitais para a criação da atmosfera. A frase "The Turn of the Screw" não aparece em nenhuma parte da história, pelo que pode representar Peter Quint, que se esvai no final - resta só o fumo do seu cigarro - na escuridão do palco - deixando-nos a sós com os nossos próprios medos.