Fábrica de gás da Matinha em risco de desaparecer
A partir de 10 de Junho, data em que deverá estar concluída a transição do gás de cidade para o gás natural na capital, o recinto industrial onde funciona a Lisboagás, na Matinha, começará a ser arrasado para dar lugar a um projecto imobiliário. Lisboa vai ganhar mais parque habitacional - dos vários em gestação na zona ribeirinha oriental - mas arrisca-se a perder a memória de uma das primeiras indústrias de distribuição nascida em Portugal e das que mais contribuiu para a modernização do quotidiano, alertam especialistas em arqueologia industrial. No entanto, já houve pelo menos dois projectos de criar um museu "in loco". O primeiro foi apresentado em 1995 pela arquitecta Maria de Fátima Jorge, autora de uma tese sobre a fábrica da Matinha, e o segundo produzido em 1999 a pedido da empresa, pelo actual director do Museu Joaquim Manso, na Nazaré, António Nabais. Diz ele: "Após isso nunca mais me contactaram. O projecto preservava e recuperava instalações fabris e os gasómetros. É pena que não seja integrado no projecto imobiliário que vier a ser construído, porque só o valorizava". O PÚBLICO sabe que a empresa não contempla a manutenção no local da primeira unidade fabril ali instalada nem os gasómetros que lhe estão associados, embora projecte a constituição de um museu de empresa, que poderá ter características itinerantes. Contra a eventual reserva de uma larga área para museu está o facto de o local - como nota o professor Jorge Gaspar, autor dos estudos preparatórios do Plano de Urbanização da Zona Ribeirinha Oriental (PUZRO) - ser um dos melhores para a criação de habitação, já que o terreno é em encosta, livre dos inconvenientes das zonas de aterro, junto ao rio - menor estabilidade, maior humidade e mais vento.O melhor em termos de terreno para habitação de luxo já se foi - era nomeadamente a chamada zona M de Chelas, onde, diz Jorge Gaspar, poderia nascer "uma nova Lapa". Ocupada por uma operação de realojamento, é hoje "quase irrecuperável". Há ainda a zona da antiga Sociedade Nacional de Sabões, mas está em parte condicionada por serventias da futura ponte Chelas-Barreiro.Os quatro gasómetros ainda existentes no recinto são uma bem visível "imagem de marca" do local, situado acima do aterro conquistado ao rio. Trata-se dos únicos reservatórios do género existentes em Portugal. O maior deles, com capacidade para cem mil metros cúbicos, tem um diâmetro igual ao do redondel da praça de touros do Campo Pequeno. São grandes cilindros de volume variável (telescópicos) construídos em metal, potenciais miradouros ou salas de concertos, com um sistema de vistas raro em Lisboa. Na opinião deste especialista em planeamento urbano,"há para a Matinha um plano [imobiliário] simples e inteligente". Jorge Gaspar admite, no entanto, a possível convivência da urbanização com "uma componente de arqueologia industrial que poderá ser integrada em termos de arte pública", um pouco à semelhança da vizinha torre da Galp, umas centenas de metros a montante. Ao longo de duas semanas, o PÚBLICO tentou junto das relações públicas da Galp Energia saber pormenores do projecto imobiliário - a cargo da sociedade de gestão Visatejo - e das intenções de musealização da empresa. Mas, embora embora a empresa tenha prometido informações, acabou por comunicar ao jornal na sexta-feira que seria prematura a divulgação de dados relativos ao complexo imobiliário, porque a proposta está "a ser acabada para ser entregue à câmara".É exactamente aquela perspectiva de "arte pública" ou de emblema histórico que outros contestam. "É importante preservar ali a chamada fábrica da água e não tem lógica criar um museu da indústria do gás fora do contexto em que ela existiu. A fábrica da Matinha já tem muito património perdido. Aliás, existe em Portugal uma lógica inovadora e internacionalmente reconhecida que é a dos museus de empresa", afirma Jorge Custódio, conhecido estudioso da arqueologia industrial portuguesa."Estando a Câmara de Lisboa envolvida num projecto para a região ribeirinha oriental, ela pode definir quotas relativas à construção imobiliária que preservem áreas destacadas do património ali existente e aumentem a qualidade cultural do município. Por que não uma estratégia que torne o aproveitamento desses espaços objecto do patrocínio do projecto imobiliário que vai nascer? ", sugere.Deolinda Folgado, técnica do Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar) e, juntamente com Jorge Custódio, co-autora livro "A Caminho do Oriente - Guia do Património Industrial", completa esta ideia:"Não seria bom que na Matinha ficasse só um ícone daquela indústria, como aconteceu ao lado, onde a ideia de se fazer um museu acabou reduzida à torre da Galp. Faço um apelo a que se salve aquele recinto industrial, nomeadamente os gasómetros, de modo a musealizar uma indústria paulatinamente destruída ao longo do rio e que foi das que mais profundamente modificou o quotidiano das pessoas". Como nota esta estudiosa, a iluminação pública - os primeiros 28 candeeiros da gás de Lisboa iluminaram-se na noite de 29 de Junho de 1848 -, a nova facilidade dos banhos quentes ou os fogões a gás - no anos 30 vendidos a crédito e com cursos para o seu "manejo cuidadoso" - criaram uma nova era. "A dona de casa, por exemplo, é uma figura completamente diferente antes e depois do gás", resume. "O gás, trazido para Portugal pelo conde de Farrobo, não chegou atrasado no tempo. Era a novidade da época e mudou tudo. As carvoarias, por exemplo, vão acabando e no seu lugar surgem mercearias, as casas das Avenidas Novas são todas equipadas com aquecimento central a gás. Os próprios carros a gás apareceram durante a segunda Guerra Mundial - era o gasogénio. Hoje, a Lisboagás, instalada na última fábrica do género existente na Europa, é herdeira disso", diz um estudioso desta indústria de distribuição. Segundo Deolinda Folgado, "deve fazer-se um museu de sítio. O contrário é seguir uma filosofia do séc. XIX que tem a ver com o coleccionismo". A técnica do Ippar acha chocante a frequência com que é destruído o património industrial, "muitas vezes por falta de inventariação e estudo daquilo que terá valor para preservar". Caso a destruição da fábrica da Matinha vá para a frente, "choca ainda mais, pois o conjunto consta de um inventário publicado [o livro] relativamente ao qual a Câmara de Lisboa não pode passar uma esponja por cima", adverte. A autarquia tem conhecimento da situação. A audição pública aos chamados termos de referência do PUZRO, que decorreu em Fevereiro e Março, não produziu muitas sugestões, mas uma das que deu entrada nos serviços municipais defendia a classificação de um dos gasómetros da Matinha e da área envolvente, como forma de preservar um espaço evocativo da indústria do gás.