O que eles (estrangeiros) disseram delas (portuguesas)
Festival de divulgação científica. Os chamados fenómenos sobrenaturais e o gosto dos britânicos pelas assombrações podem servir de pretexto para mostrar como se faz ciência
"A visita às igrejas durante a Semana Santa faz, num só dia, mais cornudos do que na vida habitual durante todo o ano." Este retrato cómico e, ao mesmo tempo, provocador da sociedade portuguesa feito por um francês, Charles Fréderic de Merveilleux, é um dos muitos apresentados por forasteiros que passaram por Portugal entre os séculos XVIII e XX, e que foram seleccionados e reunidos pela investigadora Ana Vicente no livro "As Mulheres Portuguesas Vistas por Viajantes Estrangeiros", apresentado recentemente, no Palácio Fronteira, em Lisboa.A Igreja, enquanto instituição e espaço físico, é um dos elementos que se mantém e atravessa todas as camadas da sociedade portuguesa ao longo dos três últimos séculos. Mantidas quase em reclusão durante o ano, a Semana Santa era para as mulheres portuguesas o período de libertação, uma das raras oportunidades de se relacionarem com membros do sexo masculino. Refere Merveilleux que é nesta data que "as mulheres têm a liberdade para andar pelas ruas durante toda a noite". Este encerramento feminino é de tal forma extremo que leva vários estrangeiros, como é o caso do autor do primeiro relato do livro, a constatar que "os Portugueses são ainda mais ciumentos das suas mulheres do que os Espanhóis". Assim, "elas saem de suas casas mais raramente que as de Madrid, o que os leva a dizer que elas só vão à Igreja três vezes na vida, ou seja, para serem baptizadas, casadas e enterradas". A obra inclui excertos de obras de viajantes, na sua grande maioria ingleses, como William Beckford ou William Robert Wilde, pai de Oscar Wilde, mas também franceses e espanhóis ou, mais raramente, de outras nacionalidades, como é o caso daquele que é, provavelmente, o mais célebre visitante, o escritor dinamarquês de contos infantis Hans Christian Andersen. Para esta sua nova investigação no campo dos estudos femininos - além dos 20 anos que dedicou à Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, a que presidiu entre 1992 e 1996, Ana Vicente tem publicadas quatro obras -, a autora procurou visões sobre mulheres de diferentes classes sociais, segundo explicou ao PÚBLICO: "Este não é um livro sobre algumas mulheres, mas sobre as mulheres em geral." Assim, não foi "buscar o que é dito sobre as rainhas e as princesas, porque eram mulheres especiais".Os três séculos que demarcam temporalmente a pesquisa determinaram a divisão do livro em três grandes capítulos. Os excertos são precedidos de um texto introdutório sobre a história das mulheres do período em análise, sobre as características dos viajantes e das viagens, e por uma análise das representações dominantes das narrativas seleccionadas, o que cria um pano de fundo e uma contextualização histórica. Há ainda um núcleo da obra com representações iconográficas femininas, nomeadamente as sete imagens do século XVIII que Ana Vicente conseguiu encontrar. No final, a escritora inclui ainda uma pequena biografia dos viajantes seleccionados.A beleza, a força, a tenacidade e o trabalho são algumas das características das mulheres portuguesas destacadas pelos viajantes estrangeiros. Por seu lado, os homens são vistos, como refere Ana Vicente, como sendo "pobres humanamente porque procuravam manter os desequilíbrios de poder". Apesar de ser um livro que tem como ponto de partida um olhar sobre o universo feminino, as visões apresentadas falam das mulheres, mas também dos homens portugueses, da história, da educação, da Igreja, da sociedade portuguesa em geral. Seria impossível falar das mulheres em abstracto, retirando-as e isolando-as da realidade da qual eram parte integrante e ajudavam a caracterizar. "Distanciamento" é a palavra que Ana Vicente utiliza para justificar a escolha do olhar do viajante estrangeiro, "um olhar de uma pessoa que não está integrada na cultura e no quotidiano, nos costumes e nas atitudes, por isso é muito rico". Até porque, acrescenta, "nós que estamos metidos no meio, a certa altura, ficamos cegos". Salvaguarda, no entanto, que o facto de serem estrangeiros não lhes confere maior verdade, autoridade, perspicácia ou inteligência. Segundo a autora, "o olhar é raramente de aprendizagem, é um olhar de contestação ou mesmo de recusa. É o olhar que procura sublinhar o diferente, o pitoresco e o exótico".