John Lewis, um americano tranquilo
Ainda o ano vai em Abril e já tombaram dois gigantes. Primeiro J. J. Johnson, agora John Lewis. Num tempo em que rareiam os mestres, o jazz chora os heróis da sua história.
A 29 de Março de 2001, dia do último acorde do seu piano, John Lewis tinha 80 anos, quase 81. Morreu de cancro, como podia ter morrido por outra causa qualquer, não menos absurda. Todas as mortes são violentamente estúpidas. Mas algumas pesam-nos mais. Porque aproximam as nossas próprias vidas da estupefacção do abismo. Que fazer quando a ternura de uma amizade, o sossego de um livro, a revelação de um filme, a luz de uma música ficam definitivamente suspensas no ar, sem um corpo, um rosto ou uma voz que as prenda à terra?Os habitantes do jazz vêm-se habituando a viver assim, todos os dias ao lado da morte, como se estivessem em guerra. É o preço do tempo, o custo da história de uma arte que se fez adulta depressa e jovem, colhendo génios como fruta da árvore e que assiste agora, sem força para impedi-la, à derrota final de quem nunca se deixara vencer. Como o fim de uma colheita que não promete herdeiros. Um hábito que não cura, mais hemorragia que cicatriz. Habituar-se à derrocada do sonho é uma porta para o aniquilamento. Pior do que a utopia sempre adiada é a consciência conformada da sua impossibilidade.John Lewis nasceu a 3 de Maio de 1920 em La Grange, Illinois. Entrou na história 32 anos depois, com o nascimento do Modern Jazz Quartet. Já lá tinha estado antes, em 1946, quando tocou, gravou e escreveu para a big band de Dizzy Gillespie, a primeira do bebop, mas a história não deu por isso. Em Março de 2001, na hora da necrologia, os jornais que lhe deram notícia falaram muito do MJQ, pouco da banda de Dizzy, menos ainda do próprio John Lewis. Porque John Lewis foi um americano tranquilo. E apesar de John Ford, o mundo esqueceu-se da grandeza dos homens tranquilos.No Novo México, Albuquerque, John Aaron Lewis estudou piano e música desde os cinco anos. Não conheceu o pai e aos quatro anos viu a mãe morrer. Viveu com a avó e bisavó, numa cidade pequena, 30 mil habitantes numa encruzilhada de culturas: índia, hispânica, anglosaxónica. Embora de ascendência cherokee, John Lewis pertencia a outra minoria, num estado onde a comunidade negra era reduzida. Guardou sempre orgulho das suas raízes: "A minha bisavó conheceu Gerónimo, o chefe apache, que era um homem notável, muito hábil e inteligente." Os familiares que o educaram, num clima cosmopolita sensível à cultura europeia, pertenciam à burguesia negra local. O ritmo das lições de música clássica cedo foi perturbado pelo jazz das rádios de Los Angeles e Chicago. No piano de John Lewis as notas começaram a improvisar(-se) e as primeiras formações, familiares, onde tocou não encontraram oposição em casa: dois dos seus primos já pertenciam ao mundo do jazz de Albuquerque. À prática do piano, juntou a sabedoria da vida musical colectiva e a capacidade de descobrir caminhos através de outras vozes: "Aprendi muitas coisas com os saxofonistas: não só o que se devia fazer mas, principalmente, o que não se devia fazer." À porta da universidade, John Lewis parou noutra encruzilhada, entre a música e uma carreira de dentista, logo abandonada pela paixão da antropologia, ciência nova em que descobriu uma janela rasgada sobre a compreensão do absurdo do racismo. "Queria saber como é que as pessoas podiam ser tão arrogantes; como decidiam, e porquê, que eram melhores e mais belas do que as outras." Pearl Harbour empurrou-o para a música: mobilizado, partiu para Inglaterra, sendo colocado nas orquestras dos "serviços especiais" destinados a "levantar a moral das tropas". Aí conheceu o baterista Kenny Clarke, que a guerra roubara às primeiras noites boppers de Harlem. Uma amizade que, no regresso a Nova Iorque, o conduziu directamente ao futuro: primeiro à orquestra de Dizzy Gillespie, depois a Charlie Parker e toda a corte do novo jazz.Kenny levou-o até Gil Fuller, arranjador de Dizzy que o convidou para um ensaio da orquestra. Levou alguns arranjos consigo, Dizzy pegou num deles, "Two bass hit", e entregou as pautas à orquestra. No final disse-lhe: "Contrato-te como arranjador." Aceite o emprego, acabou também sentado ao piano, no lugar de um Thelonious Monk cujos atrasos cansaram a paciência de um Dizzy farto de começar concertos sem pianista. A estante de arranjos de John Lewis foi aumentando: "Emanon", "Stay on it", "Minor walk" e o incontornável "'Round midnight". Quando a orquestra viajou para a Europa, no final de 1947, John e Dizzy eram amigos. Paris seduziu o jovem John Lewis que aí passou os dois anos seguintes, em reforçada cumplicidade com Kenny Clarke, que entretanto também se "exilara". Quando voltou a Nova Iorque, Lewis conquistou o mundo do jazz: tocou e gravou com os seus heróis do passado (Lester e Webster) e os conquistadores do futuro (Parker, Miles, J. J. Johnson, Mingus, Rollins), acumulou presenças históricas (das sessões Savoy de Parker ao noneto de Miles de "Birth of the Cool"), gravou com Clifford Brown e Charles Mingus, integrou o JATP de Norman Granz com Dizzy e Eldridge, Hawkins, Stitt e Getz.Na sua própria discografia, iniciada em Paris em Abril de 1950, o ciclo mais popular é o do Modern Jazz Quartet, de que nunca foi líder nominal mas de que foi sempre o maior sopro de vida. A criação do MJQ remonta aos dias da big band de Dizzy, quando, durante os ensaios por secções, a secção rítmica, onde moravam John Lewis, Milt Jackson, Ray Brown e Kenny Clarke, se experimentava em novas sonoridades. Foi desse primitivo quarteto (onde, em breve, Percy Heath e Connie Kay substituiriam Brown e Clarke) que nasceu o "jazz de câmara", para sempre identificado com o MJQ. Com a adopção e adaptação explícitas de formas tradicionais clássicas europeias, nomeadamente da música barroca, John Lewis - que no MJQ também exprimiu de forma superior o seu imenso talento de compositor e arranjador - introduziu no jazz uma sofisticação que a muitos ouvidos soou como heresia a exigir excomunhão. "Pecado" agravado pelo uso da indumentária clássica das formações de câmara, entendido como uma nova submissão do jazz ao "colonialismo cultural" da Europa.Só depois de muito água ter corrido sob as pontes da história, a contribuição do MJQ para a herança do jazz acabaria por ser reconhecida e aceite, com muitos dos seus antigos advogados de acusação a renderem-se ao inequívoco swing de um dos quartetos de mais forte e original personalidade de todo o jazz. A par do MJQ, Lewis, que foi um dos primeiros defensores de Ornette Coleman e Don Cherry, manteve a sua permanente atenção ao mundo. Esteve, com Gunther Schuller, em muitas das primeiras explorações do "Third Stream", criando a Modern Jazz Society, onde tocaram e gravaram J. J. Johnson, Stan Getz, Zoot Sims e Lucky Thompson, e, mais tarde, a Orchestre USA, que produziu um disco dedicado a Kurt Weill, com Eric Dolphy, Richard Davis e Mike Zwerin. A sua acção pedagógica na esquecida Lenox School of Jazz foi notável, mas é com o MJQ que a sua fama internacional se consolida, com o reflexo negativo de uma muito menor visibilidade e reconhecimento das suas outras gravações.Fiel às suas convicções, John Lewis manteve um rumo musical de extrema coerência, onde o corpo do jazz e o espírito bluesy (são raros os pianos capazes de tocar tão fundo nessa alma ancestral da música negra) coabitam com um vasto espectro da herança musical europeia, de Bach a Milhaud, Stravinsky, Hindemith ou Luigi Nono.Numa época em que as margens da música tendem a desaparecer num imenso rio oceânico, apagando fronteiras e ameaçando ou destruindo cidades e povos de forte identidade musical, John Lewis foi, em grande parte, um criador antes do (seu) tempo.