O diabo passou em Jedwabne
No dia 10 de Julho de 1941, na vila polaca de Jedwabne, duas semanas após a chegada das tropas alemães, cerca de 1600 judeus, homens, mulheres e crianças, foram queimados pelos seus vizinhos. A Polónia está em choque. A televisão pública exibiu nas noites de terça e quarta-feira um documentário sobre a matança de 1600 judeus por polacos, em 1941, na vila de Jedwabne (Nordeste da Polónia). A brutalidade do efeito não está na novidade: a polémica estava instalada há um ano. Está na insuportabilidade dos testemunhos orais recolhidos e no facto de o debate ter saltado das elites para as massas. Durante décadas, o massacre de Jedwabne foi atribuído aos alemães. O caso era conhecido desde o fim da guerra e houve até um julgamento sumário, em 1949, em que onze polacos foram condenados por cumplicidade com os alemães. Um monumento, na localidade, fixou a versão oficial do crime, atribuindo-o à "Gestapo e tropas hitlerianas". Na versão nacional da história da II Guerra Mundial, estabelecida durante o regime comunista, o passado polaco deveria resumir-se ao heroísmo da resistência. E, após a queda do comunismo em 1989, este credo foi completado com "duplo martírio" do povo polaco, sob o nazismo e o comunismo. É difícil aceitar uma culpabilidade polaca.No dia 10 de Julho de 1941, duas semanas após a chegada das tropas alemães e a fuga dos russos, cerca de 1600 judeus, homens, mulheres e crianças, foram queimados pelos seus vizinhos. No documentário, alguns dos actuais habitantes de Jedwabne, por vezes com o rosto tapado, explicaram que tinham sido os moradores, e não os alemães, quem foi buscar a casa os judeus, os meteu num estábulo e lhes pegou fogo. Os que tentaram escapar foram mortos à machadada. A seguir, os "vizinhos" pilharam as casas dos mortos. Os alemães assistiram e fotografaram. Esta é a memória recalcada da aldeia, que agora liberta o monstruoso segredo.O documentário, de autoria da jornalista Agniezka Arnold, confirma que outros massacres foram cometidos em localidades próximas de Jedwabne, como Radzilow, em que terão sido assassinados de 600 a 800 judeus. E mostra também que houve "justos": uma família salvou oito judeus, escondendo-os durante 28 meses num curral de porcos. "Os polacos viram que os alemães matavam judeus e compreenderam que eles nada fariam se os próprios polacos os liquidassem", disse na quinta-feira ao "Gazeta Wyborcza", Stanislaw Przechodzki, habitante da aldeia entre 1950 e 1984. "Satã passou em Jedwabne", titulou o "Gazeta".Há um ano, o historiador polaco-americano Jan Tomasz Gross publicou um livro, intitulado "Os Vizinhos", em que reconstituía o massacre (acaba de sair a edição inglesa: "Neighbors: The Destruction of the Jewish Community in Jedwabne", Princeton University Press). Usou essencialmente fontes orais, a memória escondida dos habitantes da região, acumulando uma quantidade impressionante de provas. Houve imediatas reacções de negação. No entanto, um inquérito feito logo a seguir pelo diário conservador "Rzeczpospolita" confirmva as teses de Gross. Em fins de Agosto, era anunciada a abertura de um Inquérito pelo Instituto da Memória Nacional (IPN), que investiga o passado nazi e comunista. Ainda hoje os negacionistas contestam a autoria polaca do massacre. Um despacho da Lusa, assinado por Nelson Rodrigo Pereira, em Varsóvia, afirma que "quem inspirou e perpetrou o massacre (...) não foram os polacos mas os alemães". O jornalista ouviu dois historiadores, Piotr Gontarczyk e Tomasz Strzembosz. Ambos retomam a tese clássica de que os alemães forçaram alguns polacos a participar na matança e afirmam que Gross escolheu selectivamente os testemunhos, afastando os que contradiziam as suas teses. Análoga negação foi feita ao "Guardian" pelo pároco local, Edward Orlovski: "Foram os alemães que mataram os judeus de Jedwabne, é certo que alguns polacos participaram, mas isso não significa que se possa colocar toda a população polaca no banco dos réus". Outros procuraram relativizar a culpa, dizendo que os judeus tinham antes colaborado com os ocupantes russos.O cardeal-primaz da Polónia, Jozef Glemp, reconheceu que "a imolação da população judaica [de Jedwabne], por polacos, num estábulo, é incontestável". O primeiro-ministro Jerzy Buzek afirmou: "Se temos o direito de estar orgulhosos dos polacos que salvaram judeus, com risco de vida, também temos de reconhecer a culpa dos que tomaram parte nestes assassínios."A lápide mistificadora do monumento de Jedwabne foi arrancada e o director do Instituto da Memória Nacional, Lion Kieres, admite que possam a ser feitas acusações judiciais no termo do inquérito em curso.O Presidente Aleksander Kwasniewski anunciou uma cerimónia comemorativa a 10 de Julho, em que pedirá perdão, em nome do povo polaco. A Polónia tem uma longa história de anti-semitismo. A última campanha anti-semita na Europa verificou-se na Polónia comunista, no fim dos anos 60. E o último massacre de judeus na Europa, teve lugar em Kielce, Polónia, a 4 de Julho de 1946, quando 40 sobreviventes do Shoah foram chacinados: desejavam regressar às suas terras e retomar as suas casas. Este massacre provocou uma aceleração do êxodo muitos milhares de judeus para Israel (Marc Hillel, "Le Massacre des Survivants. En Pologne, 1945-1947", Plon, 1985). Sobre Kielce houve poucas dúvidas, enquanto Jedwabne foi objecto de uma mistificação, o que lhe dá um redobrado interesse sobre o modo de construção da memória colectiva. Quantas lápides e monumentos não contam uma história às avessas?Adam Michnik, director do "Gazeta Wyborcza", confessa: "Num primeiro momento, também não acreditei no livro e admiti que o meu amigo Jan Tomasz Gross tivesse sido vítima de fontes enviesadas. Mas o massacre de massa de Jedwabne [...] aconteceu realmente. Deve portanto pesar na consciência colectiva dos polacos, como na minha."Michnik, judeu e antigo dissidente, penitencia-se por ter concentrado toda a sua atenção nos crimes do comunismo e "não ter procurado a verdade sobre os assassinados de Jedwabne". Chegamos ao ponto mais assustador: segundo Gross, cristãos e judeus de Jedwabne tinham tido até então relações amigáveis. E os alemães não obrigaram sequer a matar, ao contrário do que sucedeu em muitos outros casos. Que fez, de um momento para outro, uma comunidade de (honestas) pessoas vulgares perder as normas morais e transformar-se num bando selvático de assassinos? A chegada dos alemães e a percepção de que matar (judeus) se tornava permitido? A simples existência de uma ideologia anti-semita, aqui e noutros lugares, é absolutamente insuficiente para explicar a passagem ao assassínio.No último parágrafo do seu livro "Homens vulgares" ("Ordinary Men - Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland", 1992), Christopher Browning interroga-nos: "Então, se os homens do 101º batalhão de reserva da polícia puderam tornar-se assassinos, que outro grupo humano o não poderá?". O caso de Jedwabne é mais ameaçador do que os "homens vulgares" do batalhão 101. Os assassinos e as vítimas conheciam-se há gerações. Eram os vizinhos.