Quando o Porto era a capital do cinema
Precisamente duas décadas depois de ter acolhido o Congresso da Federação Internacional de Cineclubes (FICC) - foi em 1981, no Estoril, quando o presidente da instituição era François Truffaut -, o nosso país volta a acolher a reunião magna dos cineclubes de todo o mundo. Desta vez será no Porto - Capital Europeia da Cultura, e vai decorrer ao longo desta semana no Teatro do Campo Alegre, com uma agenda que associa as sessões de trabalho e de discussão do estado do movimento cineclubista (ver caixa) à mostra de filmes, que é, afinal, a justificação principal da sua existência.A associação do Porto 2001 à Federação Portuguesa de Cineclubes (FPCC) na organização do evento surgiu como oportunidade para a cidade recordar os tempos em que chegou a ser a capital do cinema. É assim que, em parceria com a Cinemateca Portuguesa, a FPCC vai exibir ao longo da semana um programa que nos quatro primeiros dias revisita os primórdios do cinema português no Porto, mas também algumas das primeiras obras menos conhecidas de Manoel de Oliveira.A primeira jornada - que, como as outras, se desmultiplicará por duas sessões diárias, às 18h30 e 22h00 - vai abrir naturalmente com a evocação do pioneiro do cinema português, Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931), com a exibição das escassas imagens da sua aventura cinematográfica de 1896 que chegaram até nós: "Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança" - o filme que, na esteira de "Sortie des Usines Lumière" (1895), dos irmãos Lumière, é considerado o primeiro do cinema português -, "No Jardim" e excertos de "O Vira" e "Feira de Gado na Corujeira". Sendo uma figura que dispensa já apresentação, o cineasta-floricultor Aurélio da Paz dos Reis foi também, e primeiro que tudo, um fotógrafo cuja obra deixou marcas e testemunhos de grande importância na história do Porto, do nosso país e ainda de cidades e eventos noutras partes do mundo - França e Brasil, por exemplo - por onde viajou. Isso mesmo será igualmente evocado, também a partir de hoje, com uma exposição de 30 fotografias suas no átrio do Teatro do Campo Alegre. O programa do primeiro dia - que inclui ainda, à noite, uma homenagem ao historiador do cinema, crítico e jornalista Henrique Alves Costa (1910-1988) - completa-se com a exibição de três pequenos filmes documentais produzidos pela Invicta Filme e relativas ao quotidiano portuense na segunda década do século XX. Os títulos são "Cidade do Porto" (1913), "Vindimas da Casa Andresen" (1914) e "Um Chã nas Nuvens" (1917). Este último tem a particularidade de registar um feito inédito que despertou a curiosidade dos cidadãos. Realizado por Raul de Caldevilla - um conceituado publicitário que, a seguir a Alfredo Nunes de Matos e à sua Invica Filme, viria a tornar-se também um nome de referência na produção de cinema no Porto -, "Um Chã nas Nuvens" documenta a escalada que dois acrobatas espanhóis, José Puertollano e o seu filho Miguel, fizeram da Torre dos Clérigos para, no cimo, tomarem... um chã com bolachas Invicta - era esta a marca que o inventivo Caldevilla quis publicitar.O cinema de ficção será contudo o prato forte desta viagem ao tempo em que a cidade do Porto rivalizou com a Europa na produção cinematográfica. E a referência maior da época é, sem dúvida, a Invicta Filme, que, entre 1918 e 1924, produziu uma vintena de filmes de ficção, ou seja, cerca de um quatro da produção portuense ao longo de todo o primeiro século do cinema!Da Invicta vão ser exibidos três filmes de Georges Pallu, o "métteur-en-scène" francês que Alfredo Nunes de Matos foi contratar a Paris para dirigir o seu estúdio, e que viria a realizar a maioria dos títulos da produtora. A comédia "Frei Bonifácio" (1918) foi a primeira ficção da Invicta, ainda numa espécie de regime experimental mas que atingiu razoável sucesso público e demonstrou a capacidade da equipa gerida por Pallu. "Barbanegra" (1920) é uma tragicomédia de fundo policial, sobre a perseguição a um perigoso delinquente na estrada Lisboa-Cascais. "O Destino" (1923) tem a particularidade de registar a única experiência cinematográfica da grande actriz de teatro Palmira Bastos. O filme, também rodado entre Lisboa e a costa litoral, registou um assinalável êxito popular. A revisitação do período de ouro da produção portuense é completada com uma das duas longas metragens da Caldevilla Film, "Os Faroleiros" (1922), também realizado por um francês, Maurice Mariaud. Desaparecido durante décadas, este filme tem uma acção praticamente circunscrita ao espaço fechado do farol do Bugio, onde dois homens se destroem pelo ciúme, e é uma das obras mais conseguidas da época.O ciclo de cinema português termina, no dia 5, com quatro filmes de Manoel de Oliveira. Entre a sua primeira obra(-prima) "Douro Faina Fluvial" (1931) e o trabalho experimental sobre a utilização da cor, "O Pintor e a Cidade" (1956), que utiliza como pretexto as aguarelas de António Cruz, serão igualmente mostradas duas curiosidades documentais: "Hulha Branca" (1932) e "Portugal Já Faz Automóveis" (1956).