Argélia, a guerra invisível
No seu último livro, o historiador Benjamin Stora interroga-se sobre o sentido da guerra civil argelina: uma guerra contra os civis. Um conflito invisível, de incrível selvajaria, à porta fechada.A guerra civil argelina fez mais de 100 mil mortos, segundo o Presidente Bouteflika. Mais de 170 mil, segundo militares dissidentes. A degola maciça de civis passou a simbolizar aquela que foi a mais moderna sociedade do Magrebe.O terrorismo baixou após as grandes matanças de 1997, quando o AIS, exército ligado à Frente Islâmica de Salvação, depôs as armas. No entanto, as notícias de Argel continuam a assinalar o império da morte. Domingo, 26 de Março: 12 pessoas de uma família massacradas por um grupo islamista, alegadamente do GIA, na periferia de Blida. Terça-feira à noite: 16 pessoas assassinadas, entre as quais oito crianças e três mulheres, também na região de Blida, quando um grupo armado atacou uma aldeia miserável e massacrou duas famílias; nos arredores de Mascara, foi degolado um guarda rural, após a sua patrulha ter caído numa emboscada; 15 islamistas mortos pelo exército, na região de Jijel. Quarta-feira: quatro islamistas abatidos pelas forças de segurança, na região de Boumerdés. Quinta-feira: cinco pessoas assassinadas por um grupo armado em Tipaza; 279 intelectuais argelinos publicam nos jornais franceses "Le Monde" e "Le Figaro" um manifesto que denuncia a "tese absurda" segundo a qual o exército argelino estaria implicado nos massacres. Artigos em jornais franceses e sobretudo dois livros controversos levantaram a suspeição de que as forças de segurança tomaram parte em matanças: Habib Souaïdia, "La Sale Guerre", La Découverte, 2001; e Yous Nesroulah, "Qui a tué à Bentalha? Algérie. Chronique d'un massacre annoncé", La Découverte et Syros, 2000. A edição de "Le Nouvel Observateur" desta semana publica um dossier sobre o assunto.Mas, para lá desta pergunta - quem mata quem -, há uma interrogação primeira: que guerra é esta?A invisibilidade e opacidade da guerra civil argelina é o objecto dum ensaio de Benjamin Stora, "La Guerre Invisible - Algérie, années 90" (Presses de Sciences Po, Março 2001). Historiador, nascido na Argélia há 50 anos, director do Institut Maghreb-Europe, professor na Universidade Paris VIII e em Rabat, Stora tem uma vasta obra sobre o Magrebe contemporâneo. Neste ensaio, Stora não dá chaves, interroga: "Como ver, como ler, como encontrar uma coerência para este conflito". "É uma guerra clássica opondo o exército regular e leal ao poder a um exército de guerrilheiros poderosamente organizados? De forma nenhuma." Nunca, ao longo do conflito, a AIS e o GIA atingiram o estádio de uma força armada bem estruturada. Vários núcleos independentes agem autonomamente, "prisioneiros de uma lógica interna de violência crescente, em que desapareceram as considerações políticas. Este dispositivo (...) facilitou toda a espécie de infiltrações e manipulações: vinganças pessoais disfarçadas de represálias políticas, execuções perpetradas por grupos estatais sob o disfarce do terrorismo." Uma guerra de guerrilha? "Não resta nas memórias nenhuma data precisa de batalhas decisivas, de lugares onde se tenham afrontado os inimigos de cara descoberta." Uma "simples e sangrenta corrida de poder entre diferentes clãs para assegurarem o controlo do Estado? A conquista das enormes riquezas geradas pelo gás e petróleo não pode por si só explicar o nível de encarniçamento e de barbárie no conflito e a precipitação da sociedade inteira numa guerra tão longa." Uma "guerra de civilização", entre os partidários da "modernidade republicana" e os "adeptos dum "fanatismo integrista"? Em parte. Mas "não é uma guerra entre religiões" - 98 por cento dos argelinos são muçulmanos. Stora chama a atenção para o entrançado de "verdades sucessivas". Nas "dobras duma guerra entre militares e islamistas, escondem-se outras guerras, decisivas e confusas". Uma história de máscaras, passagens sombrias e alçapões. "O regime e os islamistas deslocam-se incessantemente no xadrez político, modificando as suas acções, mudando de programas e de papéis, colocando-se sempre na posição de vítimas."A este entrançado soma-se um outro, o da circulação de memórias e referências entre a guerra da independência contra a França (1954-62) e a guerra civil. Mas esta "transmissão-irrigação", mais do que revelar, obscurece o presente: são "argelinos que combatem entre si, pela definição de uma identidade nacional, no quadro de um Estado soberano".Segura é a constatação de que este conflito, que já causou a morte de mais de 100 mil pessoas, é sobretudo uma "guerra contra os civis". 22 de Setembro de 1997. Um massacre de 417 pessoas na localidade de Bentalha. O sobrevivente Yous Nesroulah, acima citado, fez um relato. Os assaltantes pareciam "profissionais", usavam "falsas barbas". Tudo dá a entender que se tratou de uma "punição colectiva", mas porquê? Escreve Stora: "Quem são estes assassinos capazes de realizar uma matança de tal amplitude ao longo de várias horas? Os matadores evocados têm tudo de monstros terríveis, nunca verdadeiramente descritos [...] Os assassinos são como sonâmbulos: teleguiados, possessos, não agem, são agidos. Como pôde o comando retirar-se sem ser incomodado? Todas estas interrogações atravessam a sociedade argelina. E a opacidade de que se rodeiam, de longa data, as mais altas esferas do poder argelino impede, como sempre, a descodificação da situação e favorece os rumores. É assim que surge a hipótese, inverificável, de uma implicação - directa ou indirecta - do exército nesta tragédia."A propósito de morte, pode ainda lembrar-se o que, numa reportagem exibida numa televisão francesa, diz Fouzia, a mulher de um chefe islamista, o emir Dichou: "Se eles matam em nome de Deus, foi Deus que lhes indicou o caminho."Stora cita a socióloga Véronique Nahoum-Grappe: "Muito sangue e pouco sentido (...) O pesadelo argelino a nada se assemelha, o que nos torna incapazes de o pensar."Nesta "guerra à porta fechada", rareiam as imagens, pelo menos até 1997. Dela, "uma única imagem fixa ficou como ícone", a da "Madona", fotografada em Bentalha, após o massacre. "Só foi fotografada uma mãe plena de dor, a morte está perto de ser esteticizada, ela 'posa', por assim dizer, quando os carrascos ficam fora de campo."O ensaio culmina exactamente numa reflexão sobre a invisibilidade de um "conflito sem frente e sem rostos". Não a invisibilidade produzida pelo excesso vertiginoso de imagens e palavras, mas, à letra, a de "uma guerra sem imagens". À censura e ao encerramento do país, acresce a dissimulação dos próprios protagonistas. O que tem efeitos multiplicadores. "Como reconhecer-se num projecto de Estado teocrático, ou aceitar a manutenção de um Estado num não-direito? Esta impossibilidade de identificação com um ou outro dos campos em presença não permite os 'engagements' decisivos, tanto no interior como no exterior do país."O caos e a incrível selvajaria deste conflito desenraizaram os argelinos da dimensão do tempo. A tragédia "obedece então a regras obscuras. Nas referências que faltam, a amnésia instala-se e os actores que se afrontam, sem memória, vivem num presente perpétuo." Desiludam-se os que esperem deste livro respostas cristalinas. É um ensaio sobre a dificuldade de fazer história e o regresso do historiador à singeleza das fontes tradicionais. E, sublinhe-se, uma digressão sobre o que não sabemos, em que o próprio autor por vezes se perde. Leiam-no os que gostam de enfrentar as dúvidas.