"Wozzeck", ópera-manifesto
Continua actual e polémica 76 anos passados sobre a primeira apresentação. Ao Porto, a Birmingham Opera Company traz uma versão surpreendente de Wozzeck, envolvendo populações carenciadas e utilizando um espaço improvável. Jean Nicholson, a directora, explica tudo, em exclusivo.
"Não era isto que esperávamos de uma ópera". O pós-título do jornal "O Vozéquio" que o Departamento Educativo da Casa da Música preparou para apresentar o projecto que envolve a produção da ópera "Wozzeck", de Alban Berg, tem tanto de elucidativo como de intrigante. A realização desta obra paradigmática do expressionismo musical (ver texto anexo) no âmbito da Capital da Cultura, seria por si só um grande acontecimento. Mas quando está a cargo de uma companhia tão inovadora como a Birmingham Opera Company (BOC) e é assinada por uma figura da estatura do encenador Graham Vick, as expectativas redobram-se, como será também redobrada a polémica que previsivelmente irá afectar o resultado. A estreia está marcada para sexta-feira, dia 6, na Central Eléctrica do Freixo, no PortoPara já, o carácter singular da iniciativa, pelo menos no contexto português, parece escapar à maioria dos "habitués" da música clássica. A menção ao acontecimento junto de músicos e melómanos provoca geralmente uma expressão inicial de entusiasmo, à qual se segue a pergunta: "Vai ser no Coliseu? No São João?" Não, é na antiga Central Eléctrica do Freixo! A perplexidade aumenta com a constatação de que não haverá lugares sentados, de que a orquestra original será reduzida a 21 elementos, de que estarão envolvidos 104 figurantes provenientes de bairros tão carenciados e socialmente problemáticos como os de Aldoar e da Fonte da Moura. Na realidade, este "Wozzeck" não foi pensado para os melómanos comuns, embora lhes possa proporcionar uma experiência intensa, mas para aquelas pessoas que nunca pisaram um teatro de ópera ou uma sala de concertos. Vai mesmo mais longe, ao envolvê-las activamente, ao procurar mexer com as suas vidas desprovidas de bens essenciais, de sentido e de esperança. Esta é a filosofia da BOC, fundada em 1987 por Graham Vick, responsável entre muitas outras por uma obra de culto como "West Side Story" e com produções assinadas nos maiores teatros e festivais do mundo. Com uma vocação itinerante, a BOC tem levado a ópera aos espaços e às populações mais improváveis, desafiando regras, mitos e convenções, fazendo opções ousadas do ponto de vista musical e teatral, mas sem nunca comprometer elevados padrões de qualidade artística. De tal modo que até mesmo a crítica mais exigente se tem rendido perante a maioria das suas criações, "Wozzeck" incluído. O resultado é também um inquietante convite à reflexão sobre o papel da ópera na sociedade contemporânea e sobre a apetência cultural das populações desfavorecidas."Pensa-se sempre na ópera como um espectáculo elitista, mas a paixão de Graham Vick tem conseguido provar o contrário", explicou, em exclusivo, ao PÚBLICO, Jean Nicholson, directora da BOC desde 1999. "A música clássica pode ser um importante factor de inclusão social, alarga a experiência humana e alimenta o espírito. No princípio há alguma apreensão, mas o trabalho progressivo com os cantores e os instrumentistas vai deixando cair o medo e o mistério. As pessoas acabam por ver que estes também falam dos problemas do dia-a-dia, que são seres humanos como eles. No caso do 'Wozzeck' os figurantes misturam-se com o público, o que funciona também como forma de inclusão."Os traços violentos da trágica história do soldado prussiano são colocados por Vick num cenário de desolação contemporânea, ganhando uma dimensão ainda mais inquietante e acentuando a actualidade do tema. A produção foi estreada no passado mês de Fevereiro em Inglaterra, num bairro degradado de Birmingham, "com uma situação bastante semelhante à de Aldoar". Depois disso, foi já apresentada num velho hangar de Liverpool e num barracão de subúrbio de Sheffield. "Ir ao teatro é uma experiência intimidante, há que conhecer a etiqueta. Criar ópera em diferentes espaços pode encorajar as pessoas," reforça Jane Robinson. A adesão tem sido surpreendente, quer da parte do público, quer dos participantes. "Após algumas dificuldades iniciais, 35 a 40 pessoas concordaram em colaborar connosco. Estas têm papéis significativos na ópera, enquanto as restantes 50 participam nos interlúdios."A produção a apresentar no Porto será semelhante à de Birmingham, com pequenas diferenças nos detalhes. "Quando chegamos pode ser intimidante. Sentimo-nos parte de uma experiência maior, mergulhamos no tenebroso ambiente da acção. Vemos uma série de pessoas, algumas vestidas de médicos, as suas vítimas... Há outras que vêm ter connosco, fazem perguntas. Vê-se um bar, um jardim degradado, um carro estampado, uma cozinha, uma velhota que vê televisão, os despojos de uma existência suburbana..." Estes elementos são dispersos por dois andares, a orquestra ficará numa espécie de caixa, num dos planos superiores, e o público irá misturar-se com os cantores e os figurantes.O carácter da história, na qual as personagens vivem dramas semelhantes aos seus, foi a chave do sucesso da iniciativa junto de pessoas para quem a ópera era uma realidade estranha e longínqua. A complexidade da música não foi sequer um obstáculo "porque o conhecimento detalhado da sua complexidade técnica e estrutural não é necessário à compreensão da obra". "Quando se ouve sem complexos, o que fica é a impressão. Conhecendo a história, encontram-se facilmente pontos de referência. A música reflete o argumento de uma forma muito próxima, poderia ser uma óptima banda sonora de um filme." Tal como em Inglaterra a identificação com as personagens de Wozzeck ou Marie foi o grande trunfo para o ambicioso trabalho no terreno que a equipa do Departamento Educativo da Casa da Música, coordenada por Suzana Ralha, iniciou há cerca de meio ano nos bairros da Fonte da Moura e de Aldoar. O processo foi lento, mas as várias estratégias adoptadas, como o concurso de figurinos, apresentado num desfile de Carnaval, que levou os cinco vencedores numa viagem a Birmingham, acabariam por chegar a bom porto. De tal modo que foram os próprios intervenientes quem manifestou o desejo "de assistir a uma ópera antes da apresentação da nossa", que se concretizou com "Brundibar". Jean Nicholson não esconde a sua satisfação. "Quando estive cá em Setembro, parecia uma ideia louca, passámos imenso tempo a explicar-lhes a obra, notava-se muita indiferença. Mas, agora, quando regressei, foi fantástico ver como todos trabalharam para nos fazer esta maravilhosa recepção. E trata-se de um trabalho duro, sofisticado até. Chegaram a um resultado muito profissional. É gratificante ver pessoas com tantos problemas envolvidas numa coisa tão positiva. Este deve ser o papel do teatro e da ópera: mudar as suas vidas." Claro que há também o reverso da medalha, "a sensação de abandono no fim do projecto". Em Birmingham tem-se tentado levar a cabo actividades posteriores, como a formação de um coro ou de um pequeno grupo teatral, uma questão que está também presente na consciência da equipa da Casa da Música.Como seria de esperar, os cantores que colaboram com a BOC não são necessariamente as pessoas que cantariam num teatro tradicional. "São geralmente jovens em início de carreira, que estão dois ou três anos connosco e depois passam para os teatros. Mas são sempre excelentes actores, que correspondem perfeitamente ao que Vick pretende e que não têm medo de actuar no meio do público, de trocar experiências com pessoas alheias à música." Sempre que tal é possível, os projectos da BOC envolvem as populações locais. Nicholson menciona, por exemplo, "Ghanashyan", uma encomenda a Ravi Shankar, ou "Silas Marner", com música de Howard Goodall e "a participação de numerosas crianças e idosos, a criar o mundo social envolvente". Mas o trabalho da BOC versa também óperas ditas de repertório, ainda que estas sofram manipulações mais ou menos profundas, tal como aconteceu com "Ring Saga", uma versão condensada da Tetralogia, ou com a produção de quatro episódios de "As Bodas de Fígaro" para a BBC, como se se tratasse de uma "soap opera" - "Ninguém acreditava que havia sido gravada ao vivo." Um dos projectos recentes é a apresentação das três Parábolas de Britten e terá também a sua repercussão no Porto 2001, quando a orquestra da BOC apresentar "The Prodigal Son", na segunda-feira, dia 2, às 21h30, na Igreja de Leça do Bailio, com o Coral de Letras da Universidade do Porto e o Coro Infantil do Círculo Portuense de Ópera. Mais um exemplo de partilha de experiências a anteceder o dia de todas as expectativas, onde talvez se prove que o poder da arte não é um sonho ou uma utopia.