Preferia não escrever
"Bartleby & Companhia", do catalão Enrique Vila-Matas, é um ensaio-ficção sobre os escritores que decidiram abandonar a escrita. Estará nas livrarias em meados de Abril
Ser corcunda, trabalhar num escritório miserável e ter azar com as mulheres não o impedem de ser feliz. Mentir no emprego, alegando estar doente, só para poder escrever as oitenta razões de um escritor abandonar a literatura é motivo suficiente para o deixar ainda mais contente. A árdua ocupação de "rastreador de Bartlebys" - todos os que a certa altura do seu percurso literário preferem não escrever, tal como o zeloso escrivão do conto de Herman Melville, publicado em 1853, no "Putnam's Monthly Magazine" - confronta-o com o misterioso desígnio de haver quem valorize mais o silêncio do que o ruído da popularidade. Tempos houve em que para ser escritor era preciso recolhimento, trabalho e imaginação - agora só sobrevive quem é atleta, e não se poupa a deslocações e palestras, entrevistas e autógrafos. Um corrupio e um espalhafato de visibilidade que confundem os mais incautos. Afinal só é escritor quem aparece, pouco importa a qualidade e a perenidade da obra. "Bartleby & Companhia" (Assírio & Alvim), do espanhol Enrique Vila-Matas, 53 anos, é, mais do que um ensaio brilhante e divertido, um manifesto contra-corrente, uma crítica mordaz a todos os que pingam texto sem sentido e com reduzido talento. Neste diário obsessivo celebra-se, por contraditório que pareça, não o fim da escrita, o nada para o qual tende a literatura desde o século XIX, mas a sobrevivência da sua vitalidade, e a liberdade que um escritor tem de possuir, até ao limite de se abster de escrever. "O não é maravilhoso porque é um centro vazio, mas sempre frutífero", defende Herman Melville em carta dirigida ao amigo Hawthorne. E o mau sucedido autor de "Moby Dick" - em 1851, seria um autêntico fracasso editorial - acrescenta com ressentimento: "A um espírito que diz não com trovões e relâmpagos nem o próprio diabo pode forçá-lo a dizer sim. Porque todos os homens que dizem sim mentem; quanto aos homens que dizem não, bom, encontram-se na feliz condição de sensatos viajantes da Europa. Atravessam as fronteiras da eternidade sem mais nada que uma mala, isto é, o Ego. Enquanto, pelo contrário, toda essa gentalha que diz sim viaja com muita bagagem e, malditos sejam, nunca passarão pelas portas da alfândega."Desde o mítico Rimbaud - aos 19 anos já tinha escrito tudo e partira rumo à Etiópia, onde foi comerciante e abstémio - até Paranoico Pérez, personagem de Antonio de la Mota Ruiz que afirma não escrever porque Saramago, socorrendo-se de misteriosa telepatia, antecipa as suas ideias, há pelo menos 75 escritores da "constelação Bartleby" devidamente identificados, mais cinco pura invenção literária, confessou Enrique Vila-Matas, em entrevista ao escritor Ignácio Vidal-Folch ("qué leer", Fevereiro, 2000). As razões da abstinência literária, apresentadas pelo autor de "Viagem Vertical", são variadas. Uns escrupulosos dizem temer a repetição, outros que já está tudo dito e as palavras nada podem dizer. Os mais astutos, como Juan Rulfo, advogam ter morrido "o tio Celerino que era quem contava as histórias". Há quem declare simplesmente "não ter disposição", ou não precisar das palavras para se tornar imortal porque já alcançou esse estádio. Céptico, Boby Bazlen afirmava que a maior parte dos "livros não passam de notas de rodapé inchadas até parecerem volumes" - por essa razão só escreveu notas de rodapé, publicadas cinco anos após a morte, sob o título "Notas sem Texto". Intrigado com a estranheza de se ambicionar escrever, quando "o normal é ler", Jaime Gil de Biedma desenvolveu duas respostas habilidosas para justificar o seu silêncio literário. Se algum curioso lhe pergunta porque abandonou a escrita, responde ou que a poesia foi para si uma tentativa de reinventar uma identidade, uma vez assumida, já não faz sentido escrever, ou mais inspirado ainda conclui "tudo não passou de um equívoco": "Achava que queria ser poeta mas no fundo desejava ser poema." O narrador, velho, corcunda e em breve desempregado, interrompe por vezes os seus apontamentos sobre os "escritores do não" para nos dar conta do seu dia-a-dia de verdadeiro herói, aquele que segundo Baudelaire consegue divertir-se sozinho. Descreve sonhos (ou serão pesadelos?) onde contracenam importantes figuras do mundo da literatura tecendo sentenças. Põe-nos a par da correspondência que recebe com dicas literárias, algumas pouco motivadoras e dispendiosas. "Derain escreveu-me. Distinto colega - diz na carta -, mando-lhe fotocópias de alguns documentos literários que podem ser do seu interesse." E seguem-se indicações sobre Paul Valéry, Jonh Keats, Hermann Broch, Georges Perec e a "Crise de Vers", de Mallarmé. "São mil francos. Creio que valem bem a minha ajuda", finaliza Derain. Do diário do narrador constam também as incursões feitas ao quiosque dos jornais, onde vai apurar por que o cidadão comum não escreve. Porque haveria de escrever? Por não ter tempo, dizem muitos. Os mais lúcidos afirmam não saber, comenta Vila-Matas, que vestiu a pele do entrevistador em Barcelona. "Do que não se pode falar há que calar", recomendava Wittgenstein, e o acontecimento que marcou esta investigação sobre a patologia de não escrever deu-se há muitos anos atrás. Quando era ainda aspirante a escritor, conta o autor de "Suicídios Exemplares", assistiu perplexo ao silenciamento de um dos poetas que mais admirava. Na cerimónia da sua homenagem, o catalão J. V. Foix interveio unicamente para explicar que tinha abandonado a escrita, para sempre. "Surpreendeu-me que aquele homem regressasse do caminho que eu iniciava e intrigou-me que alguém vivo pudesse dar por terminada a obra, como já tivesse dito tudo o que tinha a dizer." Excluída a vulgaridade de não exercitar a verve literária simplesmente porque não se tem talento, todos os exemplos encontrados em "Bartleby & Companhia", misto de ficção e ensaio, são intrigantes, comoventes e divertidos. Recordamos o caso de Joseph Joubert, que toda a vida procurou um lugar ideal para albergar as suas ideias, quando o encontrou, esqueceu-se de as escrever, ou aquele outro que pôs de lado papéis e livros porque decidiu finalmente aventurar-se a viver. Mas, não se confundam os leitores, escrever também é viver e Vila-Matas, a avaliar pelo número de obras editadas, quase a chegar à vintena, não padece do síndrome que estuda - trata-se, como é habitual na sua obra, de dar continuidade ao espírito de "l'enfant terrible". Provocar e espicaçar a sua audiência trazendo para a ribalta um desfile de heróis que a sociedade moderna inventa e menospreza.Num escritório pardacento de Wall Street, em Nova Iorque, um advogado de existência rotineira confronta-se com um funcionário exemplar que lentamente vai preferindo deixar de cumprir as suas funções, para ganhar a desconcertante existência de fungo enraizado atrás de um biombo. Herman Melville faz mais do que inspirar-se na sua própria biografia, também ele trabalhara num escritório para sobreviver ao insucesso literário. Em "Bartleby" (Assírio & Alvim, 1988) o que se explora é o lento suicídio que cada um pode levar a cabo pela sucessiva desistência de si mesmo. Esquecidas as histórias particulares, o que sobeja é a eterna questão: "To be or not to be." Por isso, Enrique Vila-Matas cita Kafka várias vezes: "Um escritor que não escreve é um monstro que convida à loucura", e preenche o seu vazio existencial, pela nefasta intromissão na vida alheia. Porque não se trata aqui de escrever e não publicar. Quem não escreve e devia, seja por que motivo for, pode acabar como Paranoico Pérez, acusando Saramago de roubar todas as suas ideias, ou vingativo, a gozar com a fantasia de o Nobel se dedicar agora mais a receber doutoramentos e aplausos do que a escrever.Vila-Matas não poupa os autores que se acham capazes de escrever sem parar e, radical, acredita que a literatura do novo milénio tem de partir dos "escritores do não" para se reinventar. Assim como o melhor dos leitores deveria procurar as obras-primas e recusar-se a navegar no oceano das novidades editoriais.