Glória Menezes completamente desarmada no Tivoli
Aparece em palco com o cabelo branco rapado, enfiada numa bata de hospital. O boné vermelho esconde-lhe a cabeça quando, como se estivesse a apresentar o espectáculo da sua caminhada para a morte, Glória Menezes diz: "Não é minha intenção contar a história mas vou morrer no final". A actriz brasileira de 65 anos que os portugueses conhecem das telenovelas - e que comemora 40 anos de carreira com a peça "Jornada de Um Poema", tradução de "Wit" (Prémio Pulitzer 2000) da jovem norte-americana Margarete Edson -, apresenta-se completamente desarmada à plateia lotada do Teatro Tivoli, em Lisboa, que, na estreia, quinta-feira, a aplaudiu entusiasticamente. Enrolada num roupão vermelho, Menezes veio mais de três vezes agradecer o aplauso do público pela sua interpretação dos vários desdobramentos da personagem Vivian Bearing, uma professora de Literatura, especialista em poesia metafísica do século XVII e profunda conhecedora de John Donne, mestre da ironia. Não é um "one woman show", mas durante as quase duas horas de espectáculo a actriz esteve sempre em palco a mudar de registos numa encenação de ritmo fluido onde, apesar de quase não haver silêncios, se ouviam espectadores a tossir - o que dificulta a audição nos lugares traseiros do Tivoli. Não admira então que Glória Menezes diga que Vivian "é um personagem meteórico": "Sou narradora, primeira pessoa, conjugo essa primeira pessoa no passado, no presente, no futuro. É um personagem completo. Depois há várias coisas: o relacionamento médico-paciente, a humanidade, a bondade. E nada é dado com pieguice. A peça é 'Wit' - é ironia, brincadeira, sagacidade: levar a vida 'witemente' de uma maneira muito mais divertida do que sofrida", diz a actriz ao PÚBLICO no dia a seguir à estreia, já com um lenço a tapar-lhe a nuca. A narradora vai entrando no seu próprio passado e Menezes representa também estes duplos - ela criança, ela doente no hospital, ela professora, ela.... "É o grande barato dessa peça. Ela está sofrendo e sai de cena para comentar a dor, está morrendo e sai da morte para comentar a morte... quebra o drama". Vivian é uma mulher fria, cerebral, que passou a vida a analisar e a descodificar as palavras. Até que perante a fatalidade da morte conclui que, sem a pulsão dos sentimentos e dos sentidos, a sagacidade não serve para nada. Por isso começa a encher as palavras com a emoção. A gozar coisas simples, como comer um gelado com a enfermeira. Representa a fragilidade da razão face ao mundo: o homem tem o conhecimento técnico e científico mas não domina o universo, perante a morte torna-se um ignorante. Excepto na cena final, a personagem nunca abandona o humor e o registo dramático nunca é completamente assumido. Nem mesmo quando faz uma espécie de "mea culpa" sobre o excesso de racionalidade com que viveu ou quando a doença acelera e ela se vai transformando em objecto inactivo nas mãos dos médicos. O texto absorve a ironia dos poemas de John Donne, declamados intercaladamente pela actriz, que não conhecia a obra do inglês mas por ela se apaixonou. A peça, diz, fala do mistério da existência e propõe uma reflexão: "Como é que você está vivendo a sua vida? Se, amanhã, ficar numa situação limite, vai arrepender-se do que fez ou pensar que valeu a pena? O cancro é apenas uma desculpa, é o ser humano diante da morte, imponderável."A encenação de Diogo Vilela assenta numa gestão engenhosa da economia de meios. No palco, com um cenário de cores claríssimas, há apenas um mínimo de objectos- índices (como um frasco de soro para simular o hospital). Polvilhada por imagens da linguagem cinematográfica (como os "freezes" das personagens) a utilização do espaço tem como pilar grandes cortinas brancas, que ao abrirem e fecharem se tornam uma das componentes da sonoplastia (embora em algumas cenas abafem a voz da actriz). É por detrás delas que aparecem e desaparecem os actores. Os jogos de luzes funcionam também como separadores das personagens Vivian: no dia em que o médico lhe diz que tem cancro, há um foco de luz sobre os dois que se apaga sincopadamente para interromper esse momento e iluminar a actriz quando ela passa a ser a narradora.