Neutrinos de alta energia apanhados na Antárctida
Os neutrinos são partículas elementares muito esquivas. De pouquíssima massa e carga eléctrica nula, os neutrinos praticamente não interagem com a matéria. Atravessam constantemente a Terra de uma ponta à outra, e a nós próprios, quase sem interferirem com a matéria. Por isso, a detecção dos primeiros neutrinos de energia muito alta vindos da atmosfera é um acontecimento, como sucedeu agora graças a um novo telescópio enterrado no gelo da Antárctida. Aos telescópios associa-se uma localização no cume das montanhas, em que as lentes ou detectores estão apontados para o céu repleto de astros. Nem sempre é assim. O telescópio AMANDA (sigla de Antarctic Muon and Neutrino Detector Array), financiado pela Fundação Nacional de Ciência dos EUA, está enterrado 1500 metros no gelo da Antárctida, onde os seus detectores procuram captar partículas subatómicas efémeras vindas dos confins do Universo, os neutrinos. Na edição de ontem da revista "Nature", uma equipa internacional de físicos e astrónomos - composta por 119 cientistas - relata justamente as primeiras observações do AMANDA de neutrinos de altas energias. "Mostrámos que a técnica funciona. Temos uma sonda única e de uma sensibilidade para lá de qualquer outra experiência, e os neutrinos que detectámos têm as energias mais altas alguma vez observadas", disse Francis Halzen, da Universidade do Wisconsin em Madison, nos EUA, e que é o principal autor do artigo. Estes neutrinos de alta energia têm, como o nome indica, grandes energias devido ao facto de resultarem de reacções muito violentas que ocorreram, por exemplo, no início do Universo ou em supernovas (estrelas moribundas que explodiram). "Esses neutrinos estão a ser enviados com grande energia. Quer dizer que vêm de uma reacção muito violenta. É como se houvesse um grande acelerador de partículas à escala do Universo", explica ao PÚBLICO Jorge Dias de Deus, físico do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. "No princípio do Universo estava tudo a ferver, era energia que nunca mais acabava. Nos simuladores de partículas, onde se põe energia, tenta-se simular o que se passou no início do Universo ou nas supernovas", acrescenta.De facto, o anúncio de hoje na "Nature" abre as portas a uma nova área da astronomia: o estudo de enigmáticos fenómenos do Universo, como os buracos negros, as explosões de raios gama ou os destroços de estrelas que explodiram, de onde se pensa que emanam os neutrinos cósmicos de alta energia. De todas as partículas de altas energias, explica um comunicado de imprensa da Universidade do Wisconsin em Madison, apenas os neutrinos transportam informação directamente dos confins do Universo e de processos violentos e produtores de altas energias. Como mensageiros fantasmagóricos, os neutrinos atravessam as estrelas, os campos magnéticos ou as galáxias sem interferências, o que também os torna altamente difíceis de detectar. É certo que em laboratório, em grandes aceleradores de partículas, se produzem neutrinos de alta energia. Mas, como é necessária muita energia, é muito caro. Detectores subterrâneos também já haviam captado neutrinos de baixas energias vindos do Sol, de supernovas próximas da Terra e também gerados na atmosfera terrestre. Mas os neutrinos de altas energias oriundos de fontes cósmicas só conseguem apanhar-se com detectores muito grandes, enterrados em águas profundas ou no gelo, por exemplo. Ao enfiar o telescópio AMANDA debaixo da terra, o objectivo era deixar de fora outros eventos de altas energias. Aterra serve de escudo, excepto para os neutrinos, e o gelo funciona como um detector de partículas. Como é que o gelo é um detector? "Como a profundidade é grande, o gelo é uniforme devido à pressão. É um meio inerte, em que é fácil fazer a detecção de partículas", diz Dias de Deus.Os resultados do AMANDA são sobre neutrinos de alta energia, mas apenas dizem respeito a neutrinos atmosféricos e não aos neutrinos cósmicos propriamente ditos. Aqueles são neutrinos criados quando os raios cósmicos embatem na atmosfera terrestre: ou seja, quando uma outra partícula oriunda do espaço, como um protão ou neutrão, interage com o ar da atmosfera e provoca um neutrino. Embora tenham de alguma forma uma origem astrofísica, os neutrinos atmosféricos ainda não são os neutrinos cósmicos tão cobiçados pelos cientistas. Mas, pelo menos, provou-se que o AMANDA é capaz de os apanhar. Agora, os cientistas estão a planear a construção de um detector ainda muito maior que o AMANDA, para capturar os neutrinos cósmicos - o IceCube, que ocupará um quilómetro cúbico debaixo da Antárctida e será feito de 4800 módulos eléctricos dispostos em 80 fileiras.