Fantasmas, visões, gente que vê gente morta, cadáveres renitentes - uni-vos porque chegou o vosso tempo no cinema americano. E desta vez é a sério, já não é como nos anos 40 e 50 em que o vosso lugar era "apenas" nas séries B da RKO e nos filmes de zombies de Tourneur. Agora estão por todo o lado. Até numa terreola algures no meio da sulista Georgia, como se vê neste infeliz "O Dom"/ "The Gift", o desafortunado "presente" que Sam Raimi nos resolveu dar depois de, com o "O Plano", nos ter oferecido não apenas o seu melhor filme mas também um dos mais interessantes filmes americanos dos últimos anos.
O argumento de "O Dom" é assinado por Billy Bob Thornton, o que desde logo deixava antever mais uma crónica sobre o sul dos Estados Unidos, desenhada a partir de um qualquer foco de contradição. Os momentos iniciais do filme parecem vir confirmar essa hipótese: somos apresentados à personagem de Cate Blanchett, uma cartomante/vidente que gere o seu negócio em casa, e serve de centro espiritual alternativo à igreja da terra: prevê, aconselha, reconforta e dá respostas a seres mais ou menos perdidos, sejam eles mulheres violentadas pelos maridos (Hillary Swank) ou mecânicos a braços com traumas de infância (Giovanni Ribisi). É aparentemente aceite pela comunidade (vê-se pelo modo como se integra nas festas e na vida social local, ou ainda pela relação com o professor de liceu interpretado por Greg Kinnear), mas há sinais - estamos no "God fearing" sul dos Estados Unidos - de alguma desconfiança, representada pela violenta personagem de Keanu Reeves (numa curiosa presença "against type"), que lhe chama "bruxa" tanto quanto se auto-define como um "bom cristão".
Fantástico de pacotilha. Durante os primeiros vinte minutos, sensivelmente o tempo que demoram a ser apresentadas as personagens e clarificado o seu estatuto, "O Dom" parece que vai ser, portanto, um retrato de grupo, um filme sobre o calor e as contradições do sul, estruturado sobre pequenos dramas do quotidiano. Depois, subitamente, acontece um crime (ou suspeita-se que aconteceu, pois a infiel noiva de Greg Kinnear, interpretada por Katie Holmes, desaparece), e "O Dom" passa a ser outra coisa, situada algures entre um filme de Shyamalan (menos rococó, no entanto) e "A Verdade Escondida" de Robert Zemeckis.
As visões de Cate Blanchett, que até aí pareciam ser apenas um condimento bizarro relativamente marginal no tecido narrativo do filme, tornam-se essenciais à trama, e forçam a viragem do filme para o território do fantástico. Começa então o desfile do cadáver da personagem de Holmes, seja em estado ambulatório (vagueando por aí) seja estagnado (atolado no fundo de um lago), e nem falta, no final, a intervenção decisiva de um fantasma, ou pelo menos de alguém que era suposto estar morto há umas horas.
Raimi, na sua carreira, já por mais de uma vez lidou com mortos deste género, mas, quer em "Evil Dead" quer nos exércitos de esqueletos de "Army of Darkness", a lógica era absolutamente diferente, assentava no puro delírio e na mais completa irrisão. "O Dom", pelo contrário, não só se manifesta extraordinariamente convicto no misticismo de pacotilha que exibe (pode ser culpa de Thornton, mas isso não desculpa Raimi) como não denota o menor sinal de haver hipótese de que isto não seja para levar a sério. Para além do mais, passando a funcionar como "whodunit" a partir da descoberta do corpo de Holmes (descoberta "visionada" por Blanchett), acaba por ser bastante desonesto: que dizer de uma intriga policial onde tudo - literalmente tudo - se resolve não por investigação e dedução, mas por obra e graça dos poderes extra-sensoriais de uma personagem?
Havendo sempre uma conveniente intervenção sobrenatural para superar um problema prático, tudo parece (é) demasiado fácil, e profundamente desinteressante. E como Raimi se submete inteiramente a esta trama - o filme reduz-se a ela, ao contrário do que sucedia no pequeno "conto moral" que era "O Plano" - sai-se de "O Dom" com vontade de voltar a Sherlock Holmes. Ele, ao menos, só tinha a morfina como ajuda.