Anna Akhmátova: Sob a tua mão em concha o meu coração
Escreveu o primeiro poema aos onze anos, e nunca mais deixou de se expressar em verso, nem mesmo nas décadas de silêncio aparente ou forçado. Anna Akhmátova, uma das maiores vozes poéticas da Rússia do Século XX, chega agora a Portugal em prosa e verso, traduzidos directamente do russo. A descobrir.
Anna Akhmátova escreveu o primeiro poema aos onze anos, e nunca mais deixou de se expressar em verso, nem mesmo nas décadas de silêncio aparente. "Desde sempre eu soube tudo sobre a poesia", anotou em 1965, um ano antes da morte. A provável pretensão de uma declaração como esta dilui-se na humildade que se segue: "e nunca soube nada da prosa." Gostava de realçar esta oposição. À relação orgânica que lhe era dado ter com a poesia, no seu estilo claro e aparentemente simples, opunha "o mistério e a sedução" que lhe parecia a escrita corrida, sem rimas ou outros recursos estilísticos para escolha das palavras. Por isso, tudo o que chegou a escrever em prosa teve-o para si como um acto de coragem. Alguns desses trabalhos queimou-os, não por deles se envergonhar, mas por outra razão mais funda: o filho tinha sido preso. Da sua vida e obra, chegam agora a Portugal, traduzidos directamente do russo, os registos autobiográficos e poéticos de "Prosas Escolhidas e Poema Sem Herói" e o livro de poesia "Só o Sangue Cheira a Sangue". No primeiro se recolhem dados sobre uma existêcnia excepcional.Anna Andreyevna Gorenko nasceu em 1889, em Bolshoy Fontan, perto de Odessa, na Ucrânia, filha de um engenheiro naval e de uma activista de um grupo revolucionário. Muito cedo adoptou um pseudónimo, que foi buscar ao nome de uma bisavó, princesa tártara, medida precoce que pareceu tranquilizar o pai. Este temia a desonra da família pelo facto de ter produzido uma "poetisa decadente". Não se sabe se, mesmo assim, não terá sido por essas e por outras que ele abandonou a casa, tinha a filha dezasseis anos. Anna estudou no liceu feminino de Tsárskoe Sélo, cidade satélite de Petersburgo fundada de raiz no princípio do século XVIII para residência da corte imperial, tornando-se assim num pólo de atracção para todos os ramos da aristocracia, mesmo os falidos, e para artistas em busca de raízes culturais. Depois do liceu, prosseguiu os estudos no Smolnyi Institute de Petersburgo, no liceu Fundukleevskaia de Kiev, e na faculdade de Direito. Aqui, gostava das matérias teóricas e sobretudo de História, mas quando passou aos assuntos jurídicos achou-os absurdos e desistiu, preferindo estudar literatura.Aos 21 anos, Akhmátova fez-se membro dos acmeístas, movimento artístico de reacção às abstracções do século XIX: "A nossa revolta contra o simbolismo foi absolutamente legítima, porque nos sentíamos pessoas do século XX e não queríamos estagnar no anterior..." O líder dos acmeístas, Nikolai Gumiliev, foi o seu primeiro marido. Tiveram um filho, Lev, que também se tornaria escritor. De 1910 a 1912, Akhmátova passa por Paris, onde conhece o pintor Modigliani, que dela pintaria um retrato admirável, e viaja pela Suíça e pelo norte de Itália, onde se espanta com a pintura e a arquitectura. A sua primeira recolha de poesia é publicada em 1912. Um ano depois, surge o primeiro livro: "O Rosário".Em 1918, termina a relação com Gumiliev e casa com Vladimir Shileiko, de quem se separa dois anos depois, vindo a divorciar-se em 1928. Em 1921, Gumiliev é executado por alegadas actividades anti-revolucionárias. Pelas décadas seguintes, outros amigos da poetisa serão forçados a emigrar, presos ou mesmo mortos, incluindo o filho e o terceiro marido, Nikolai Punine, que morreria na prisão em 1958. A ela não a prendem, mas deixam de lhe publicar os poemas, os novos e os antigos. Contudo, Anna não deixa de trabalhar, na sombra, entre a poesia e os ensaios sobre Púchkin.Por tão bem ter sabido esconder os seus versos, ainda e sempre no tom autobiográfico que era o seu, dando voz na primeira pessoa às emoções de um povo exangue, é aceite em 1940 na exclusivista União dos Escritores Soviéticos. É esse o ano em que começa a trabalhar no "Poema Bez Geroya" ("Poema Sem Herói"), obra que só terminaria em 1962. Construído em três partes, não tem uma história nem um herói, mas sim os traços do que pode definir-se como a essência do século XX: a dor da alma humana diante da infâmia das múltiplas repressões, e ruídos de guerra em fundo. Vive o inferno branco do cerco de Leninegrado, no Inverno de 1941, e em 1942 alguns dos seus poemas, numa selecção cuidadosa, vêem a luz do dia: uns na publicação literária Zviezda, e o "Coragem" numa primeira página do Pravda.Talvez o consentido recolhimento não fosse, afinal, bastante convincente, talvez fosse demasiado claro que, apesar de publicamente calada, as suas melancolias continuavam a jorrar-lhe em versos secretos. Por isso, ou por alguma denúncia levada ao Comité Central, a verdade é que em 1946 foi expulsa da União. Nos anos 50, escreveu poemas em louvor de Joseph Estaline, publicados na revista "Ogonyok". Foram o preço que escolheu pagar pelo regresso do filho, exilado na Sibéria. Para ganhar dinheiro, traduziu obras de Victor Hugo, Rabindranath Tagore e Giacomo Leopardi. Escreveu também as suas memórias de Aleksandr Blok, Modigliani e Osip Mandelstam. Depois da morte de Estaline, foi recuperada para a cena literária, e em 1964 foi eleita presidente da União dos Escritores Soviéticos."Prosas Escolhidas e Poema Sem Herói" reúne assim duas das faces mais espantosas do seu trabalho. Uma, nesse trípico que muitos dizem incompreensível, por ela depois dedicado aos "amigos meus e concidadãos que morreram em Leninegrado durante o bloqueio". E outra, em algumas das prosas sobreviventes, incluindo a "Prosa Autobiográfica" e o seu "De Mim, Resumidamente" (porque "devemos escrever de nós mesmos o menos possível"), com relatos de episódios em tom de diário e sucintas alusões a lugares da memória, como a sua Moscovo primaveril. Destaque-se ainda uma face dentro das prosas, que ocupou uma considerável parcela não só no seu trabalho como nas suas paixões, e também presente neste livro: alguns textos sobre Púchkin.O poeta lírico e ensaísta Aleksandr Púchkin (1799-1837), autor de "Mozart e Salieri" entre outras obras históricas, considerado o fundador da moderna literatura russa, foi muito amado e depois impiedosamente banido da alta sociedade de Petersburgo, e Akhmátova, na sua experiência de proscrita, não descansou enquanto não percebeu porquê. Passou parte dos seus anos de silêncio, quando ela própria estava à margem do que era então o centro de poder do seu país - ao tempo de Púchkin era o imperador, ao tempo de Akhmátova era o Comité Central -, a estudar-lhe as obras, a intuir-lhe influências, a ler-lhe os vestígios da sua relação com a Rússia e com as pessoas que lhe foram sendo próximas, incluindo a mulher, por quem morreu tão cedo num duelo insensato. Depois da morte, a mesma sociedade que o banira colocou-o num pedestal, e Akhmátova desmonta os detalhes da hipocrisia, em "Uma Palavra sobre Púchkin" (pág. 83). Os dois escritores tinham em comum outro detalhe biográfico: ambos estudaram em Tsárskoe Sélo.Com Anna Akhmátova foi assim: pela poesia tudo soube e tudo pôde dizer, mesmo que a não deixassem. Veja-se "À Laia de Prefácio", no "Requiem" (incluído em "Só o Sangue Cheira a Sangue", pág. 77), justificando este seu monumento literário em memória das vítimas do terror de Estaline. Apesar desse poder, que nunca ninguém lhe conseguiu roubar, arrisca uma dúvida: "Ouvi a valsa das libélulas da suite de bailado de Chostakóvitch. [...] É possível fazer com a palavra o que ele faz com o som?" Lendo-a, dir-se-ia que sim.