Curtis Hanson tem um percurso curioso dentro da indústria americana. Antigo crítico de cinema, a sua carreira "dentro" de Hollywood começou pela escrita de argumentos - capítulo onde é imperioso destacar a sua colaboração com Samuel Fuller para "The White Dog" (1982), um dos mais bizarros filmes americanos dos últimos 20 anos, e certamente um dos mais subestimados do realizador de "Pick Up on South Street".
Depois, passado à realização, continuou sempre a haver qualquer coisa de distintivo no trabalho de Hanson, mesmo em filmes parcial ("Los Angeles Confidencial") ou totalmente ("The River Wild", com Meryl Streep) falhados. A sua cinefilia por vezes nota-se: "A Janela do Quarto de Cama", o filme com que se estreou na realização em 1987, partia de uma referência hitchcockiana, assim como "Los Angeles Confidencial" se assumia como homenagem ao cinema americano dos "forties" e "The River Wild" podia ser visto como um "Apocalypse Now" em ponto pequeno.
Mas isso será, talvez, a única coisa dentro da obra de Hanson a passar de uns filmes para outros (a par de um manifesto domínio das regras do "suspense", como se constata ainda através de "A Mão que Embala o Berço"), pois cada um dos seus filmes é um compartimento estanque, sem ramificações de qualquer tipo - como se a cada filme se completasse um determinado investimento (temático ou estilístico) e nada sobrasse para desenvolvimentos posteriores. A ideia de "work in progress" não podia ser mais estranha à obra de Curtis Hanson.
Agridoce. "Wonder Boys" em nada o desmente. Mas se, como em todos os filmes de Hanson, existe um ar demasiado "acabado" (qualquer coisa que se abriu e fechou ali) que não o deixa ser o grande filme que o realizador até agora ainda não fez, a verdade é que talvez nunca se tenha estado tão perto disso. Em primeiro lugar, trata-se de uma impecável peça de artesanato hollywoodiano, que se vem juntar aos dois Soderberghs actualmente em exibição em Lisboa. Com a diferença matricial de os filmes de Soderbergh trabalharem resíduos de géneros e memórias mais ou menos cinéfilas (o cinema liberal dos anos 60 e 70 para "Traffic", o policial clássico cruzado com o rescaldo da geração dos "angry young men" britânicos para "O Falcão Inglês"), enquanto o de Hanson se situa num território genericamente muito mais indefinível. Aliás, mesmo as mais elementares categorias narrativas são insuficientes para o catalogar - nem comédia nem drama, talvez o termo certo seja mesmo a "tragicomédia" que o realizador refere no folheto promocional. Certo, certo, é que "Wonder Boys" tem um delicioso sabor agridoce. Mas também o seu encanto é difícil de definir. O argumento, escrito por Steve Kloves, é uma peça fulcral. Conta a história de um professor universitário de literatura (Michael Douglas), ex-menino prodígio que no entanto, aos 50 anos, ainda não acabou o seu primeiro livro (vai em 1200 e tal páginas, quando devia ter cerca de 200), e do seu encontro com um dos seus alunos (Tobey Maguire), também ele um candidato a "prodígio" e dotado de uma série de características peculiares (é um cinéfilo, propenso a exercícios mórbidos como ordenar alfabeticamente os suicidas mais célebres de Hollywood, e é um mentiroso compulsivo).
Há ainda as personagens de um editor em crise de auto-estima (Robert Downey Jr.), prestes a ser despedido da empresa onde trabalha por não se enquadrar nos seus "novos parâmetros" (que ele define como sendo a "competência"...), e da amante da personagem de Douglas (Frances McDormand), que está grávida e exige que ele assuma alguma responsabilidade no caso. E há mais coisas, entre personagens (uma jovem "groupie" de Douglas, interpretada por Katie Hudson) e requintados pormenores de argumento: desde um colete uma vez usado por Marilyn a um cão morto, que passa o tempo quase todo na mala do carro de Douglas.
Todo o imbróglio emocional daqui resultante é gerido com algum brilhantismo por Curtis Hanson - reparar-se-á, para além de toda a elegância e eficácia da mise-en-scène e montagem postas ao serviço do filme, no cuidadoso trabalho sobre o tempo, sempre em "dilatação", e insuperável na gestão do impasse que toma conta das personagens.
"Wonder Boys", no fim de contas, é um filme sobre essa impasse, ou melhor, sobre a necessidade de lhe pôr cobro: as suas personagens (Douglas em particular, mas todas as outras) vivem em "bolhas", numa espécie de medo de si e de medo do mundo, mas chegou o tempo em que as circunstâncias exigem que a "bolha" seja rebentada - ou seja, há escolhas que devem ser feitas, opções que devem ser tomadas, identidades que devem ser assumidas, para pôr cobro a uma "adolescência" que durou muito mais tempo do que a sua fase natural. E há que encontrar reservas de coragem para fazer o que deve ser feito, sobretudo quando "o que deve ser feito" implica tomar as opções mais complicadas e encarar as suas consequências.
Há, como é óbvio, um medo e uma angústia inerentes a toda a esta situação, e o modo como esse medo e essa angústia se colam a toda a atmosfera de "Wonder Boys" de maneira tão perfeita e uniforme é um dos segredos do filme. Bafejado por uma melancolia rara, não demasiado triste, mas também não demasiado ligeira, que parece menos uma "construção" do que o resultado "químico" da interacção entre todos os factores envolvidos, "Wonder Boys" é uma das melhores surpresas que este ano nos trouxe. Talvez seja exagerado falar em estado de graça, mas andamos lá perto.