Verde fada de Anadia

O famoso absinto, que apaixonou os artistas da "belle époque", encontra produção em Anadia, nas Caves Neto Costa. Rumo à familiar empresa, fundada em 1931, foi possível penetrar no processo produtivo desta mítica bebida. A fórmula do destilado de ervas foi parcialmente revelada, constatando-se que a polémica "artemisia absinthium", ainda proibida nos Estados Unidos, é uma das plantas integrantes. Quanto aos efeitos do absinto, saiu gorado o desejo de a mente se iluminar. Ficam na memória os escritos e pinceladas daqueles que, em pleno século XIX, se enamoraram da "Fada Verde".

Da pena - sejamos honestos, é um teclado - não sairão geniais poemas ou prosas de (in)sana inspiração. Do pincel, metamorfoseado em máquina fotográfica, muito menos sairá, que seja, uma linha cubista. Essa genialidade, que para Baudelaire residia na sensibilidade do ser e para Picasso na excentricidade do Homem, não se viu brotar da ingerência de absinto, essa polémica bebida deveras consumida na "belle époque" que apaixonou, nalguns casos fatalmente, alguns dos iluminados que o mundo teve o prazer de conhecer. O mito da fada verde ("La fée verte"), que mais adiante explicaremos, encontra a sua produção em muitos países - e não só na República Checa, como uma série de artigos recentes em revistas estrangeiras tenta vender -, como sejam França, Espanha, Suíça, Itália e Anadia (vila, é certo). Isso mesmo, na capital portuguesa do espumante, bem perto dos leitões da Bairrada, encontra-se a empresa líder no mercado nacional - até por evidente falta de concorrência -, de seu nome "Caves Neto Costa".Chegados à rua da Igreja, protegida pelo Monte Crasto, facilmente se encontra a familiar empresa, fundada a 24 de Janeiro de 1931 por Horácio Neto Costa, que conserva ainda uma vasta produção de bebidas, nomeadamente vinhos e aguardentes, licores, espirituosos, xaropes e espumantes. No campo dos licores, "Tijuana", "Amêndoa Amarga" e "Triplice Seco" são as marcas de referência, enquanto nos espirituosos encontramos o "Absinto". A secreta fórmula do destilado de ervas, conforme explicaram os administradores Isabel Neto Costa e João Nascimento, crê-se ter sido inventada por António Neto Costa. Isabel não quis revelar a poção mágica do tio, pois "o segredo é a alma do negócio". Já o processo de produção de absinto foi desvendado, tendo o responsável pela área de licores da empresa, Manuel Ferreira, feito a seguinte descrição: "é seleccionado um conjunto de plantas [entre as quais a polémica "artemisia absinthium", sementes de funcho e de hissopo e erva de cidreira] que ficam em infusão durante, aproximadamente, 48 horas. Depois, o concentrado resultante da infusão é destilado no alambique, acrescentando-se-lhe, de seguida, álcool [57 por cento], água, açúcar e corantes naturais [que dão à bebida a cor verde, a mesma que veste a fada]". Aliás, o absinto Neto Costa difere de outros igualmente produzidos em Portugal - como o "Farão" - pelo facto de estes últimos não serem destilados. Quer a produção de absinto quer a dos restantes produtos desta empresa anadiense regem-se, conforme se pode ler nos rótulos das garrafas, pelos "métodos tradicionais" ou clássicos de produção com base em matérias-primas naturais. Razão pela qual, garantem os administradores, o "produto é encarecido"; adiantam ainda preferir "abdicar da margem de lucro, mas fazer coisas com qualidade". Uma garrafa de absinto pode custar entre 1700 e 1900 escudos sendo que, tal como no tabaco, "a maior parte são impostos", afirma Isabel Neto Costa.Acompanhada a conversa de um café - as horas eram impróprias para beber absinto e ainda era preciso fazer uns tantos quilómetros na auto-estrada (como se lê num site não-oficial sobre a bebida, "se beber absinto nem sequer pense em conduzir, até porque eu posso estar na mesma estrada!") -, ia sendo desbravada a história da empresa, actualmente presidida pela mãe de Isabel, Maria da Luz Neto Costa. Com um volume de negócios da ordem dos 390 mil contos, cerca de 60 por cento desta facturação é garantida pela comercialização de licores, xaropes e espirituosos. Em Portugal, e falando apenas do absinto, a Neto Costa é líder de mercado, com vendas anuais de 120 mil garrafas, explicando Isabel que "cá, o consumo está estabilizado, porque nunca foi banido, não sendo, por isso, novidade". Já no Brasil, é a histeria total... anda tudo atrás de uma "paulada", como dizem os brasileiros, de absinto. Isto porque, o seu consumo foi recentemente liberalizado devido à campanha levada a cabo pelo empresário Lalo Zanini que conseguiu, junto do Ministério da Agricultura, ver a importação de absinto ser aprovada, mas com uma graduação alcoólica "reduzida" a 53,5 por cento. O absinto que entra em terras brasileiras pelas mãos de Lalo Zanini tem por marca a Neto Costa. Face ao entusiasmo brasileiro em torno desta bebida, a empresa delineou já uma estratégia de internacionalização do absinto neste mercado. De resto, as Caves Neto Costa vendem ainda para Inglaterra (onde a Hill's é líder), Holanda e Dinamarca, exportando anualmente 50 mil garrafas. Junto de quem sabe, pois a variadíssima informação existente sobre o absinto é, por vezes, inconsistente, tentamos aprofundar o mito da "Fada Verde" e da polémica e/ou demoníaca "artemisia absinthium". Comecemos por esta última, derivada da palavra grega "apsínthion" que, em tradução livre para português, significa "imbebível", quiçá por causa do paladar amargo indissociável do absinto. Esse "demónio" de nome "artemisia", curiosamente também o primeiro nome de uma das grandes seguidoras de Caravaggio, a romana Artemisia Gentileschi, fora usado em tempos idos para cura de inúmeros males. Rezam as milhares de páginas na web que a "artemisia absinthium" fora usada por Hipócrates, o "pater" da medicina, para tratar o reumatismo, a anemia, e até mesmo as flatulências. Chegados a 1792, o médico francês Pierre Ordinaire descobriu que da artemisia, misturada com mais cerca de 15 ervas, poder-se-ia obter algo alcoólico. Neste preciso caso, 70 por cento de álcool e 30 por cento de infusão constituíam o legado de Ordinaire. Cinco anos volvidos, Henri-Louis Pernod abre a sua primeira destilaria de absinto na Suíça e, já em 1805, constrói uma unidade maior em Pontarlier, França. E é precisamente nesta época que se começa a falar dos efeitos demoníacos da "artemisia absinthium", cujo uso ainda hoje é proibido nos Estados Unidos. Se é certo que nos dias que correm a legislação só permite o uso de 10 miligramas de artemisia por litro, no século XIX o (ab)uso era aproximadamente 26 vezes superior (o valor é discutível). Se se juntar a essa forte dosagem o facto de 70 por cento da bebida ser álcool puro, então estaríamos perante uma derradeira e alucinogénia "moca". Acreditava-se na altura que a ingerência desmedida do absinto, com sua artemisia incluída, tinha o condão de queimar os neurónios e, consequentemente, provocar alucinações, crises psicóticas e danos letais no sistema nervoso. Mas, a crer pelas palavras de Oscar Wilde, não seria preciso enfrascar muito absinto para se chegar perto da síndroma "absinthism", como ficou conhecida a partir de 1850. Escrevera então Wilde que, "depois do primeiro copo, vêem-se as coisas como desejaríamos que elas fossem. Depois do segundo, vêem-se as coisas como elas não são. Finalmente, vêem-se as coisas como elas realmente são, e essa é a coisa mais terrível do mundo". E será provavelmente graças à artemisia que os poetas boémios de então se deixaram encantar pela ilusão da "Fada Verde", imortalizada na tela por Albert Maignan ("A Musa Verde", 1896). Porquê "La Fée Verte"? Muito simplesmente porque, diz quem sabe, o absinto tornou-se a musa de cada nova expressão artística que surgia na época. Vejamos os exemplos mais sonantes. A precoce morte de Verlaine é justificada pela ingerência desmedida de absinto. Também Baudelaire, para quem "a embriaguez, enquanto dura, não passará, é certo, de um imenso sonho, graças à intensidade das cores e à rapidez das concepções, mas possuirá sempre a tonalidade do indivíduo", terá visto a "fada verde", bem como Rimbaud, que se calhar terá mesmo tomado "um absinto no inferno". Espiando a pintura, em 1885, o peculiar Van Gogh pinta "Copo e Decantador de Absinto", não esquecendo "Os bebedores de absinto", do parisiense Degas e "O bebedor de absinto", de Picasso. Algures, a musa inspirou. De alguma forma, os seus inebriantes contornos terão emocionado Hemingway, que acreditava que "um homem pode ser destruído, não pode ser vencido". Multiplicações de identidades "sui generis", descritas no livro "Absinto, a cocaína do século XIX: a história da droga alucinogénica e os seus efeitos nos artistas e escritores na Europa e nos Estados Unidos", de Doris Lanier, à venda na Amazon.com. Assim o foi, e assim o deixou de ser. A 28 de Agosto de 1905, poucos dias depois de a mítica bebida ter sido banida na Bélgica, Jean Lanfray assassinou a sua mulher, segundo constou na altura, após ter bebido absinto a mais. A partir desta data foi a vaga proibitiva: em 1908, na Suíça, em 1910, na Holanda, em 1912, nos EUA e a 16 de Março de 1915 o absinto é banido em terras francesas. Os números poderão não ser fiáveis, mas são os registos existentes: em 1910, eram produzidos em França, anualmente, 36 milhões de litros de absinto e, em 1912, segundo o cronista da época A. Capus, o consumo anual e mundial da bebida rondava os 221,8 milhões de litros. Hoje, os números não existem, a artemisia ainda é proibida nos Estados Unidos e a lendária Pernod produz "mais um anisado do que absinto", explica Isabel Neto Costa. Por cá, o absinto anadiense acompanha as noites lusas, se bem que o licorista Manuel Ferreira tenha já visto "quatro raparigas e quatro rapazes beberem duas garrafas de absinto, em plena tarde, no parque da Cidade (Porto)". Um licorista que, imagine-se só, nunca bebeu absinto, com medo de "estourar". Afinal, 57 por cento de graduação alcoólica, havendo mesmo países que produzem absinto com 75 graus, não é brincadeira. E quanto a rasgos putativamente poéticos, recordemos as palavras de Barbereau a Baudelaire: "Não percebo porque é que o homem racional e espiritual utiliza meios artificiais para chegar à beatitude poética, quando o entusiasmo e a vontade bastariam para o elevar a uma existência supranatural. Os grandes poetas, os grandes filósofos, os profetas, são seres que pelo livre e puro exercício da vontade atingem um estado em que são ao mesmo tempo causa e efeito, sujeito e objecto, magnetizador e sonâmbulo". Ao que Baudelaire acrescentou: "Penso exactamente como ele".

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