O jazz de mil caras de Dave Douglas
O Tiny Bell Trio do trompetista Dave Douglas estreia-se hoje em salas portuguesas. Conhecido dos discos, o mais antigo dos actuais projectos musicais de Douglas é um espelho do modo pragmático como a música (e todas as artes) também tem de ser encarada: a sua identidade, nominal e instrumental, nasceu em 1991 como resposta à necessidade de formar uma banda que "encaixasse" na pequenez de um café nova-iorquino, o Bell Café. Daí o Trio (constituído por três vozes singulares: trompete, guitarra e bateria), o Tiny e o Bell.Desde 1997, por quatro vezes Portugal deu palco a Dave Douglas. E, excepcionada a primeira noite, em que actuou como militante do colectivo Masada de John Zorn, todas as outras três presenças protagonizaram projectos pessoais diferentes: com o seu sexteto tocou no Jazz em Agosto desse mesmo ano, com o quarteto Charms of the Sky foi cabeça de cartaz no Festival de Jazz do Porto de 1999 e hoje, com o Tiny Bell Trio, inscreve o Centro Cultural de Belém no seu roteiro europeu. Uma situação que reflecte, à escala menor dos palcos portugueses, a sua própria dimensão internacional, hoje referenciada como um dos maiores símbolos do jazz contemporâneo, cuja natureza se confunde com a simultânea multiplicidade de opções musicais.Nos anos oitenta, quando as certidões de óbito se acumulavam à sua cabeceira, o jazz habituou-se à sua morte anunciada. Duas décadas depois, poucas vozes estarão dispostas a dar a cara para negar a sua vitalidade. Hoje o jazz não só está vivo como dá sinais de encontar-se no limiar de uma imensa encruzilhada de destinos como há muito não conhecia. O que há um par de anos era citado como um fenómeno europeu - a diversidade e multiplicação de novos horizontes, independentemente da amplitude da cada um - generalizou-se aos EUA, ao ponto de já não fazer sentido falar do "experimentalismo" europeu versus o "tradicionalismo" americano. De um lado e outro do Atlântico, acentua-se a tendência (e explodem os nomes com ela identificados) para uma crescente diversidade de projectos dentro da obra dos mesmos autores.E se é certo que a história do jazz ensina, à margem de muitas ideias feitas, que alguns dos seus maiores protagonistas tocaram em variados contextos e exploraram mais do que uma escola, a verdade é que o movimento contemporâneo não se confunde com essa "pluralidade na uniformidade". O que hoje marca, de modo profundo, a identidade de uma boa parte das novas gerações de jazzmen é a "pluralidade na diversidade". A amplitude da obra de um Louis Sclavis, por exemplo, não advém da prática de vários estilos de jazz, mas sim da exploração de distintos caminhos musicais, ora identificados com o jazz (Duke Ellington), a música improvisada (as cumplicidades com Fred Frith), a memória erudita (Rameau) ou as vagabundagens "étnicas" (os "diários africanos" do trio com Henri Texier e Aldo Romano). Um gesto musical ainda mais ampliado em Dave Douglas, líder de cerca de uma dezena de colectivos bem diferenciados na sua identidade musical, parte deles claramente plantados em chão jazzy, outros abrindo-se e habitando caminhos que do jazz apenas guardam a certeza de que só tendo passado por ele é possível inventá-los e andá-los.Além de detectar as metamorfoses que se foram operando na história recente do jazz, importa sublinhar que a causa dessas transformações parece radicar menos em qualquer alteração substantiva da natureza do jazz e mais numa mudança dos próprios músicos de jazz. A formação académica que décadas a fio foi a excepção é hoje a regra geral entre os jazzmen. Embora sem ignorar os conhecimentos clássicos de mestres do passado, como Teddy Wilson ou Art Tatum, a grande linha de separação tem outras coordenadas - enquanto Parker ouvia e amava Stravinsky, as novas gerações estuda(ra)m, toca(ra)m e ama(ra)m Stravinsky (e boa parte da história posterior da música). Parker era um músico de jazz que se abria a outras músicas que não praticava. Muitas das personalidades mais ricas e interessantes do jazz contemporâneo são músicos que, entre outras músicas, tocam jazz e o levam consigo quando viajam noutros mundos.Sem esta nova cultura musical - que representa um novo ciclo e uma ruptura com um passado recente em que grande parte dos jovens músicos mais pareciam sucessivas versões formatadas segundo os cânones académicos das primeiras escolas de influência mundial, como por exemplo a Berklee de Boston - a paisagem contemporânea do jazz seria necessariamente menos variada.Que há, então, a esperar esta noite de Dave Douglas, Brad Shepik e Jim Black reunidos nessa alma colectiva que é o Tiny Bell Trio? Um concerto valioso, exigente, desafiador e fiel à sua matriz original, tecida numa e duma multiplicidade de relações (do cruzamento à travessia, da comunhão ao confronto) entre memórias do jazz e raízes da música popular da Europa balcânica. Uma música que, qualquer que seja o bilhete de identidade com que viaja ou é ouvida, tem o jazz inscrito nos seus genes.