Manuel Alves e José Manuel Gonçalves
Manuel Alves tem 47 anos, José Manuel Gonçalves 38. Apresentaram a primeira colecção conjunta num desfile de Outono-Inverno em 1984. Já tinham uma loja de roupa de homem quando, em 1990, abriram a loja de roupa de senhora no Bairro Alto. Actualmente, só fazem colecções para mulher, mas prometem voltar em breve ao homem. No final deste ano estarão representados no El Corte Inglés e, dentro de ano e meio, acreditam que terão um novo espaço próprio com as colecções de homem e mulher, as primeiras e as segundas linhas. Receberam-nos no atelier, em pleno Chiado, juntamente com a Teresinha, uma simpática King Charles Spaniel.
PÚBLICA - O Manuel Alves formou-se em gestão. Como é que veio parar à moda?MANUEL ALVES - Fui sempre um apaixonado por moda, e em determinada altura da minha vida tive oportunidade de conhecer muitas pessoas ligadas ao sector. M.A. - Sim, após o 25 de Abril, descobre-se todo o potencial do Norte para fabricar produtos têxteis e de confecção. A indústria estava ligada ao "sportswear", à roupa de rua, e até houve estilistas ingleses que começaram a procurar o Porto. O intercâmbio era grande, a cidade "explodiu" em termos de oferta de mão-de-obra. Era a época "disco" e a ambiência começou a despertar em mim uma grande vontade de fazer coisas - o que acontecia de forma muito natural, pois só convivia com pessoas ligadas ao sector. Costumava dizer: "Um dia destes vou trabalhar nesta área, naquilo de que gosto mesmo."M.A. - Nasci perto de Montalegre. Estudei em Braga, em Lisboa no Porto, onde fui acabar o curso de Gestão. Fiz algum tempo de tropa, fui dar aulas. Fui professor no liceu de Leiria, no liceu de Famalicão e terminei por aí. Estive uns meses a trabalhar numa empresa e desisti porque não era nada daquilo que queria. A outra vida era muito mais atraente.M.A. - Não. Só me lembro de que era uma pessoa com gostos muitíssimo eclécticos. Para me vestir, comprava produtos que não tinham nada que ver com o habitual. Conhecia tudo sobre marcas! O que não era muito normal, porque na altura havia pouca informação. Mas foram esses primeiros anos no Porto que me deram vontade e autoconfiança para prosseguir. Eu sabia que sabia trabalhar nas coisas. Tanto assim era que, no espaço que abri, fui logo trabalhar com uma marca própria. M.A. - E depois abri a segunda. Eram as lojas Cúmplice, de roupa para homem (uma na Rua Júlio Dinis e a outra na Rua Carlos Alberto, ambas no Porto). Tinham imenso êxito. Duraram até 1983. No ano seguinte vim para Lisboa.M.A. - Não, não foi. Tive de pedir emprestado.JOSÉ MANUEL GONÇALVES - São coisas feitas com muita paixão.M.A. - De um dia para o outro, deixei o emprego. Consegui arranjar 50 contos e lancei-me na abertura desse espaço.M.A. - Sim. Tinha ateliers, fazia as malhas - as camisolas da Cúmplice eram famosíssimas. Ainda hoje sei lidar muito bem com malhas, e com calças. Era um historial de roupa de homem muito interessante.M.A. - A loja servia um público muito ávido de coisas novas. Toda esta gente de Lisboa mais ligada à estética era minha cliente no Porto. Quando vinha à capital, as pessoas telefonavam-me a pedir que lhes trouxesse "carradas de coisas".M.A. - Trabalhava com o António Coelho. Depois ele deixou a moda... O certo é que eu continuei e vim para Lisboa. M.A. - No Porto foi-se fazendo um certo tipo de trabalho, fixando um percurso, mas chegou-se a uma altura em que a cidade não permitia muito mais - era muito fechada, não oferecia grandes horizontes.J.M.G. - Não havia imprensa e as coisas ficavam por ali.M.A. - Ainda fiz desfiles, "performances" e exposições, na Cooperativa Árvore. Fiz imensas coisas! Quando já não podia fazer mais nada, decidi que Lisboa era o sítio. Comecei a notar, na zona do Bairro Alto, uma agitação muito grande, uma movida muito interessante. Tal como com o emprego, de um dia para o outro decidi vir viver para Lisboa. Peguei nos meus cães, nas minhas malas e vim, sem saber o que fazer à minha vida. Foi sempre assim.J.M.G. - Conhecemo-nos porque tínhamos amigos comuns.M.A. - O Porto não era só limitado por não se poder ir além do que sistematicamente se oferecia: não havia público que apostasse noutro tipo de proposta. A inovação tinha limites, e a mim não me apetecia ter limites. Por isso, abri a loja no Bairro Alto. Se o meu objectivo fosse ganhar muito dinheiro, estar supermilionário, teria ficado no Porto... J.M.G. - A única certeza que eu tinha na vida era a de que não iria trabalhar numa coisa que detestasse. Acabei o liceu em Abrantes, fiz um percurso normal, muito ajuizadinho, tirei sempre boas notas, passei sempre, porque só tinha um objectivo: sair da cidade onde estava para vir para Lisboa. Vim estudar para Lisboa aos 16 anos. Entrei em Direito, onde estive um ano e odiei. No final do ano lectivo, mudei para História. Tirei o curso superior para justificar perante os meus pais a mesada que recebia deles. Houve coisas no curso que adorei - cadeiras, professores -, mas a História não foi uma paixão. Quando me licenciei, não quis ser professor. Isso obrigar-me-ia a ir de novo para a província e não me apetecia deixar os amigos que tinha em Lisboa. [Agora, José Manuel Gonçalves e Manuel Alves são professores na licenciatura de Design de Moda na Faculdade de Arquitectura de Lisboa.]J.M.G. - Tenho quase menos dez anos do que o Manuel, mas Lisboa era engraçada, estávamos na altura dos Heróis do Mar. Comecei a gostar de moda precisamente por causa desses movimentos musicais. Tinha amigos em Belas-Artes que me mostraram uma outra maneira de estar, de que o vestir fazia parte. Comecei a meter o bedelho... Lembro-me de fazer roupa com amigos meus e de colar as bainhas com UHU... Não havia técnica, era um espírito. J.M.G. - Sim, para sair à noite. O grupo era constituído por pessoas ligadas à pintura, às artes em geral. A moda, na altura, não tinha o peso que hoje lhe atribuímos. Estava a despontar qualquer coisa, mas a moda era mais uma maneira de se mostrar, de ser diferente. Para se comprar uma "Vogue", era preciso deixar o nome na Livraria Bertrand, e só nos chegavam as atrasadas. E isto não foi há muitos anos! Estava tudo muito ligado aos movimentos musicais - New Wave, Spandau Ballet -, que tiveram uma influência determinante nas pessoas com quem me dava. Foi então que conheci o Manuel, que já tinha a loja com roupa de homem.M.A. - Eu comecei a fazer roupa de senhora e tu entraste aí.J.M.G. - Não, não foi só roupa de senhora. O que acontecia é que eu me chateava de só fazer roupa de homem. Era uma canseira.J.M.G. - Sim, mas no início só com o nome dele; como dupla, foi em 84. Fazíamos roupa de homem e em 87 decidimos começar com roupa de mulher.M.A. - Muita pena. Tínhamos um público masculino fantástico. Mas dentro de um ano eles vão ter uma surpresa.J.M.G. - Quero abrir um novo espaço, mais democrático até no que respeita a preços. Não quero abrir uma nova loja para fazer o que já faço. O espírito é outro: alcançar um público muito mais generalista, que não sei quem é. M.A. - Passámos a ser muito assediados pelo lado da roupa feminina. A resposta começou a surgir mais da parte da mulher e optámos. Havia uma maior envolvência. J.M.G. - E era inviável manter no atelier pessoas para fazer as duas colecções.M.A. - Já foram, agora não.M.A. - Nalguns casos, mães, filhas e netas. Tenho clientes de 18 anos, de 40 e tal anos, 50 e até 70. J.M.A - A faixa etária principal será entre os 25 e os 45, 50. Não podemos fugir a isso porque, para virem ter connosco, já tem de haver um certo poder económico que, em regra, só existe nessa faixa etária. Mas, dentro do possível, gostava de ser acessível à maioria das pessoas. M.A. - Foi variando, mas há quem nos seja fiel desde o início das colecções de mulher.J.M.G. - Pode surpreender, mas é verdade. O principal factor da minha sobrevivência reside na grande fidelização desde o início. É evidente que há clientes que saem e outras que entram, como em tudo na vida. Há outras que o são hoje e que daqui a um ano, se calhar, já não serão. Mas o mercado funciona assim. Tenho clientes comigo há 12, 15 anos.J.M.G. - A [actriz] Maria João Bustorff... Desde o tempo da loja de senhora no Bairro Alto que é nossa cliente.M.A. - As actrizes Rita Blanco e Alexandra Lencastre, a decoradora Graça Viterbo e as filhas, Ana Costa Almeida...J.M.G. - Não saí do Bairro Alto por precisar de me deslocar em função da cliente, não foi isso. Havia uma limitação em termos de espaço geográfico - lugar para estacionar o carro, por exemplo, era muito complicado. M.J.G. - Se calhar eu era mais permeável às ideias das pessoas quando estava no Bairro Alto, o que não quer dizer que hoje não as ouça. Quando se opta por um atendimento mais personalizado, é evidente que se tem de ouvir a pessoa. Mas as clientes com quem tenho alguma relação são aquelas que nunca me questionaram, nem nunca me vieram impingir nada. Atendimento personalizado, sim, mas sem esquecer que existe uma colecção e que é essa que tem de ser vendida.M.A. - Por vezes há uma certa prepotência. Eu não sou prepotente, faço as pessoas virem até mim, e isso é uma questão de sedução. As pessoas não gostam de variar muito, estão cheias de "clichés" e não se sabem ver de outra maneira ao espelho. Cabe-nos a nós demonstrar o contrário: podem vir com ideias, mas ao fim de um quarto de hora já desapareceram.J.M.G. - Se chega alguém com essas ideias, digo: "Lamento muito, mas aqui não é o sítio indicado." M.A. - Obviamente que há um respeito muito grande pela pessoa em si, pelo seu estilo, a sua maneira de estar, a sua envolvência, o que faz, o que não faz, como se move. Quem está neste ramo tem obrigação de saber ouvir e captar esses sinais.J.M.G. - Vê aqueles vestidos de mangas compridas? O que eu faço é tirar as mangas.M.A. - Não faço igual. Tenho uma colecção e elas escolhem. Se querem que desenhe algo só para elas, faço-o. É um produto muito mais caro. A cliente paga o trabalho que tivemos a pensar nela, a exclusividade, o trato mais íntimo. A maior parte das minhas clientes são consumidoras de marcas, conhecem muito bem a oferta do mercado. Ao virem ter connosco, a nossa responsabilidade cresce. Como são pessoas com poder de compra, são extremamente exigentes e estão a par do que se passa na moda. Dá-me prazer saber que quem vem ter comigo é cliente de uma etiqueta qualquer (Prada, Gucci, Valentino...), isso quer dizer que estamos no caminho certo. J.M.G. - O meu pai não aceitou da melhor maneira. Achou um desperdício. Não gostou e ainda hoje não gosta. Para ele seria muito melhor se eu tivesse sido professor de liceu.M.A. - Nunca senti nada disso, sempre fui muito independente. Nunca houve interferências de espécie alguma em relação à minha vida profissional ou privada. Não emitiam opinião. Respeito muito a liberdade deles e há que respeitar a minha. Nunca lhes perguntei, mas acho que se sentem muito felizes por eu trabalhar em moda.J.M.G. - Não, só quando dou presentes no Natal. [Risos.] A minha irmã mais nova está sempre a pedir-me coisas, ora uma gola para pôr num casaco, ora... Digo-lhes para virem ao atelier ver as coisas que sobram de colecções antigas e novas, mas elas também não têm muita paciência.M.A. - A minha irmã gosta muito de roupa e a minha sobrinha deixa-se seduzir muito pelas marcas. M.A. - Quando uma colecção nossa foi referida na "Vogue Homme" francesa. Era um "croquis" muito bem feito com a nossa roupa. Na "Vogue" francesa, com as colecções de todo o mundo, nós ilustrávamos as grandes tendências internacionais. A abertura da loja de mulher também foi muito marcante para mim. Gostei imenso.J.M.G. - Recordo-me da loja de homem. Era tudo tão diferente... Lembro-me de estar até às seis da manhã a pintar uma parede. Hoje em dia, se calhar, já não o faria.M.A. - Vou por aquilo que foi muito emotivo. Lembro-me de um desfile ao som de Miguel Bosé, com luzes e bolas de espelho. No fim, a "passerelle" ficou inundada de flores, as pessoas de pé, a aplaudir. Encheu o ego, foi muito comovente, bonito. E também a abertura do atelier.J.M.G. - Tenho imensas saudades dos primeiros tempos. Lembro-me de estar a fazer camisas e pensar "ninguém vai querer isto". E queriam! Lembro-me de estar a contar o dinheiro para fazer a colecção. A participação na Gaudí, em Barcelona; o período em que trabalhei nas fábricas [os dois estilistas colaboraram com a indústria para as marcas Carlo Giotto, Mauritius e Quazar], foi óptimo para a minha experiência, porque contactei com tudo que havia para contactar.M.A. - Lembro-me mais dos prémios de design e de moda que obtivemos no estrangeiro e no nosso país por causa desse trabalho nas fábricas do que daqueles que obtive sozinho.J.M.A. - Aquilo não eram colecções, eram causas, e lembramo-nos sempre melhor de tudo o que é uma causa. M.A. - Era uma causa: a indústria e o design. Fomos pioneiros nesse aspecto.M.A. - Temos uma relação estreita com o Paulo Gomes, uma pessoa muito especial para nós.J.M.G. - Não consigo fazer colecções, e muito menos desfiles, se não tiver uma história pelo meio para contar. Gosto sempre de transmitir uma mensagem. Quero que haja uma leitura extravestuário. Adoro consumir imagens. Toda a minha vida fui apaixonado por cinema e por música. Hoje em dia não consigo dissociar a roupa disso. Tive a minha fase Almodovar, a minha fase David Lynch, a minha fase Marlene Dietrich. Tenho muita pena de não fazer filmes sobre roupa.